Por Luiz Bernardo Pericás.
A população indígena brasileira tem motivos para se preocupar
com o governo interino encabeçado por Michel Temer e sua quadrilha. As demandas
históricas dos povos originários não recebem a devida atenção das autoridades
nem visibilidade da imprensa e suas causas são, frequentemente, relegadas a um
segundo plano na esfera do Estado. O resultado: perseguição crescente às suas
comunidades, assassinatos, abandono ou descaso em relação à infraestrutura
básica e perda de território.
Entre os principais inimigos dos índios se destaca a bancada
ruralista no Congresso, que aprovou na comissão especial a PEC 215, que trata
as terras tradicionais como propriedades rurais. Com o fim do conceito de
“tradicionalidade”, abre-se caminho para o avanço de empresas em áreas já
homologadas. Esta proposta, além disso, transfere da União para o Congresso a
competência pelas demarcações. Isso para não falar na própria CPI da Funai e do
Incra, outra pauta apoiada pelos ruralistas.
É bom ressaltar que o novo ministro da “Justiça”, Alexandre
de Moraes (o mesmo que classificou os protestos dos movimentos sociais contra o
impeachment como “atos de guerrilha”), declarou que irá rever as “demarcações
de terras indígenas que foram feitas, se não na correria, no apagar das luzes”
do governo Dilma (como a TI Dourados-Amambaí Peguá I, no Mato Grosso do Sul,
onde vivem os guarani kaiowá, o grupo que mais sofre com assassinatos em todo o
Brasil, numa área em que 390 moradores perderam a vida por conflitos armados
entre 2003 e 2014). Um comentário sem dúvida pouco alentador, mas que na
verdade reflete a intenção do próprio Michel Temer, que chegou a aludir
“extraoficialmente” algo no mesmo sentido (antes do afastamento, Dilma acelerou
o processo de demarcação de terras indígenas, tendo a Funai, ulteriormente,
delimitado nove áreas, a presidência homologado quatro e o Ministério da
Justiça, declarado doze).
É verdade que o histórico de Rousseff neste caso também não é
dos melhores. Sua gestão foi a que menos reconheceu terras indígenas desde a
redemocratização do país (ainda assim, a presidente afastada homologou em torno
de um milhão de hectares). Durante sua administração, a Funai foi enxugada: o
orçamento da fundação, que era de R$ 174 milhões em 2013, passou para R$ 154
milhões em 2014 e chegou a R$145 milhões em 2015. Além disso, o número de seus
funcionários permanentes diminuiu, a instituição operando atualmente com apenas
36% da sua capacidade total de servidores. Os índios, por sua vez, não
conseguiram colocar, nesse período, nenhum representante no Parlamento. Com
Temer, porém, a avaliação dos povos originários é que a situação vai piorar.
Afinal, a hostilidade dos ruralistas é grande. E há exemplos
que mostram nitidamente isto. Um deles é o deputado federal Luís Carlos Heinze,
do PP do Rio Grande do Sul, que recentemente fez um chamamento em vídeo a
colegas da “Associação de Pequenos Agricultores de Ilhéus, Una e Buerarema”, incitando
à violência contra os tupinambá de Olivença (Bahia). Em sua saudação, afirma
que ele e seu grupo estão “trabalhando para desmontar a farsa da questão
indígena” e que “agora, com o novo ministro da Justiça”, se empenharão para
“mudar a direção da Funai”. Segundo o político gaúcho, o país está sob nova
direção. Isso significa que sua bancada, na atual conjuntura, irá se esforçar
para desmanchar muitos decretos e portarias. Este é o mesmo deputado que,
poucos anos atrás, disse que os índios e outras minorias são “tudo que não
presta” e que, por estas e outras razões, em 2014, recebeu da ONG britânica
Survival, o título de “Racista do ano”. A agressividade dos ruralistas, assim,
deve ser ressaltada quando se trata de uma questão tão delicada.
Não se pode esquecer também do ataque do setor da mineração
em diversas frentes. Uma delas, a nível parlamentar, através da PLS 654/2015,
proposta por ninguém menos que o senador Romero Jucá, tem como objetivo
simplificar o licenciamento ambiental, inclusive para as obras de mineração.
Não custa recordar o papel nefasto deste político ao longo
dos anos. Em artigo no jornal O Globo, de 9 de abril de 2016, Arnaldo Bloch
lembra a atuação de Jucá como presidente da Funai no governo Sarney. Segundo
Bloch, este indivíduo “teve papel preponderante na mais devastadora política de
destruição de terras indígenas desde o contato com a fronteira branca, em fins
do século XIX”. Diz o colunista: “Nos anos 1980, o hoje senador pelo PMDB de
Roraima estimulou uma corrida ao ouro que provocou uma invasão de mineradoras e
garimpeiros ilegais. O número de exploradores chegou a ser cinco vezes o de
ianomâmis. Só o reconhecimento, em 1992, dos 9,6 milhões de hectares, maior
área demarcada do Brasil, de alta relevância para a proteção da biodiversidade
amazônica, estancou a sangria”. Continua ele: “Jucá não sossegou. Foi ele quem
apresentou o projeto de Lei 1610, de 1996, propondo o recorte das terras de
olho no artigo 176 da Constituição, que libera a exploração com legislação
específica… Hoje, mais de 50% da superfície ianomâmi está requisitada por
mineradoras. A filha de Jucá, sócia majoritária da Boa Vista Mineração, teve
90.000 hectares requeridos. Com a tramitação da PEC 215, determinando a revisão
das demarcações em aberto e das homologadas – ferindo a tal Constituição Cidadã
que Michel Temer se orgulha tanto de ter integrado – imagine-se o que vem por
aí”. É esse o homem que o presidente golpista escolheu para trabalhar a seu
lado como ministro do Planejamento.
A invasão dos territórios nativos e das florestas é
acompanhada pelo aumento do desmatamento. O assoreamento dos rios e a
contaminação de solo e água por utilização de pesticidas são consequências
deste fenômeno. A situação é alarmante. De acordo com o pesquisador do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Antonio Donato Nobre, em
entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos (IHU), em relação à devastação
da selva, só de corte raso, nos últimos 40 anos, se eliminou o equivalente a
184 milhões de campos de futebol. Ou seja, “foram destruídas 42 bilhões de
árvores em 40 anos, cerca de 3 milhões de árvores por dia, 2.000 árvores por
minuto”. Essa tendência tem provocado mudanças climáticas no país, com o
aumento de temperatura, racionamento de água e secas agudas e prolongadas em
diversas regiões. Por trás de tudo isso, os interesses do agronegócio e das
grandes corporações…
A situação no momento, portanto, é grave. Como afirma um
documento do CIMI, entre as reivindicações da bancada ruralista ao novo
mandatário estão “a readmissão de formas de trabalho análogas à escravidão” e
“o fim do licenciamento ambiental e a exploração desenfreada da biodiversidade
brasileira”, além “da revisão das demarcações de terras indígenas e o
tratamento das retomadas de terras tradicionais feitas pelos indígenas como
casos de segurança nacional, com envio do Exército para áreas consideradas como
de ‘risco’ de ocupações por estes povos”.
Os confrontos parecem inevitáveis. Nesse sentido, o governo
Temer já pode contabilizar as primeiras vítimas indígenas. Em Caarapó (MS), no
dia 14 de junho, um agente de saúde, o guarani kaiowá Cloudione Rodrigues Souza,
perdeu a vida após ser baleado por fazendeiros locais, que também feriram
outros seis índios (entre os quais, uma criança). Os atiradores dispararam
contra um grupo de nativos, reunidos perto da aldeia Teikuê (dois dias antes,
em torno de cem homens haviam iniciado o processo de ocupação das terras
reivindicadas por eles, o que desagradou os produtores rurais da região, que
tem a intenção de contestar judicialmente o relatório da Funai, que demarcou o
território). Esta área possui 55,5 mil hectares e pode garantir a sobrevivência
de quatro comunidades da região, com quase seis mil pessoas. Os índios, neste
caso, viram de perto a brutalidade dos fazendeiros…
Os indígenas brasileiros, assim, não têm nada a comemorar com
o governo golpista de Michel Temer. Pelo contrário. Mas eles certamente se
manterão firmes e altivos em sua resistência histórica. Inclusive contra o
usurpador de plantão e seus asseclas. É dever de todos nós apoiar a sua causa
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