quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Indiferentes (1917)




Por Antônio Gramsci.

Odeio os indiferentes. Acredito, como Friederich Hebbel, que “viver significa participar”. Não podem existir os apenas homens, os estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão e participar. Indiferença é abulia, é parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam frequentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a isola melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque devora nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e, às vezes, os faz desistir da empresa heróica.
A indiferença actua poderosamente na história. Actua passivamente, mas actua. É a fatalidade; é aquilo com que não se pode contar; é o que perturba os programas, que destrói os planos, mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um acto heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que actuam como à indiferença, ao absentismo de muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça, mas porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode cortar, deixa promulgar as leis que, depois, só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade que parece dominar a história não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Os factos maturam na sombra; poucas mãos não vigiadas por qualquer controle tecem a teia da vida colectiva, e a massa ignora porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados conforme as visões restritas, as finalidades imediatas, as ambições e paixões pessoais de pequenos grupos activos, e a massa dos homens ignora-os porque não se preocupa com isso. Mas os factos  amadurecidos vêm à superfície; a teia tecida na sombra acaba por se cumprir, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenómeno natural, uma erupção, um terramoto de que todos são vítimas, quem quis e quem não quis, quem sabia ou não sabia, quem tinha estado activo ou foi indiferente. Então este zanga-se, queria subtrair-se às consequências, desejaria que se visse que não deu o seu aval, que não é responsável. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos se interrogam: se eu tivesse cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos se autocriticam pela sua indiferença, pelo seu cepticismo, por não terem emprestado o seu braço e a sua actividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal, combatiam e se propunham a conquistar tal bem.
A maior parte deles, porém, perante factos consumados, prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a sua ausência de qualquer responsabilidade. E não é por que não vejam claramente as coisas, e que, por vezes, não sejam capazes de perspectivar excelentes soluções para problemas mais urgentes, ou para os que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas, mas esse contributo para a vida colectiva não é animado por nenhuma luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que implica que todos sejam activos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de qualquer género.
Odeio os indiferentes também porque me aborrecem as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a cada um deles sobre o modo como cumpriu a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fez e sobretudo do que não fez. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou participante, estou vivo, sinto nas consciências viris da minha gente pulsar a actividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que suceda não será devida ao acaso, à fatalidade, mas à inteligência dos cidadãos. Ninguém ficará à janela a olhar enquanto poucos se sacrificam, se esgotam no sacrifício. E aquele que fica à janela, de atalaia, quer usufruir do pouco bem que a actividade de poucos consegue realizar e desafoga a sua desilusão vituperando o sacrificado, o esgotado, porque não conseguiu o seu intento.
Vivo, sou participante. Por isso odeio quem não participa, odeio os indiferentes.

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