Por Luiz
Manfredini *
Não
eram apenas soldados, cavalos e estilingues. Também eram bombas de gás
lacrimogênio e outros gases, escudos e cassetetes para a multidão de soldados
desmontados e vestindo aqueles assustadores uniformes de combate, viaturas e
carros-pipa do Corpo de Bombeiros prontos para esguichar água.
Na
ensolarada e tépida manhã de uma terça-feira, 14 de maio de 1968, mais de três
mil estudantes haviam tomado a Reitoria da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) e toda a quadra que também abrigava as faculdades de Economia e de
Filosofia, Ciências e Letras. Ocorria, em pleno centro de Curitiba, a primeira
ocupação em uma universidade brasileira
Em
época de inusitada movimentação, em todo o Brasil, de secundaristas e
universitários em luta contra a redução de recursos para a educação, nada
melhor, penso, do que recordar um episódio histórico protagonizado pelos
estudantes de Curitiba, lá se vão quase 50 anos.
Em
maio de 1988, lembrando o vigésimo aniversário da tomada da Reitoria da UFPR,
publiquei no principal jornal cultural da época, o Nicolau, editado em
Curitiba, o texto que segue abaixo:
Nós, de estilingue, atrás das barricadas.
Enlaçado
por cordas, sob a pressão de pés-de-cabra e alavancas de madeira, o busto em
bronze do reitor Flávio Suplicy de Lacerda resistiu por alguns minutos, ao cabo
dos quais descolou-se lentamente do pedestal de pedra e despencou para
estatelar-se no chão de petit-pavé. Juntamo-nos para hastear a bandeira e
cantar o Hino Nacional. Havíamos tomado de assalto a Reitoria da Universidade
Federal do Paraná e comemorávamos o feito com certa solenidade e irreprimível
febre juvenil. Passava um pouco das oito horas da manhã tépida de terça-feira,
14 de maio de 1968. A instituição universitária - olímpica, vetusta e
autoritária - arquejava diante da súbita fúria estudantil.
Havíamos
perpetrado, desde o início do ano letivo, algumas ações para boicotar o
pagamento da anuidade instituída, pela primeira vez, na UFPR. Imaginávamos -
não sem razões - tratar-se de ponta de lança para a extinção - que não
admitíamos - da tradicional gratuidade do ensino brasileiro, fruto dos acordos
MEC-USAID assinados um ano antes. Na semana anterior, resolvêramos impedir o
vestibular de uma turma noturna - e paga - da Faculdade de Engenharia. Na
primeira investida, no Centro Politécnico, obtivemos sucesso.
Na segunda, dia
12 de maio, domingo, 1.200 policiais militares nos aguardavam. E éramos tão
somente 500 guris. A polícia nos atacou a cavalo e armada com espadas. Durante
mais de quatro horas lutamos com tenacidade e coragem, transformando os campos
vizinhos ao Centro Politécnico numa praça de guerra. Mas fomos vencidos.
Tomamos
a Reitoria porque desejávamos criar um fato suficientemente arrojado e eficaz
para garantir nossos objetivos. Algo que não redundasse no desvantajoso
confronto em campo aberto onde éramos invariavelmente derrotados pela
repressão. Fizemo-lo, também, porque enfrentar as instituições, tomá-las de
assalto de quando em quando, era o influxo hegemônico dos anos 60, que
regurgitavam rebeldia. Muito do que se fez naquela década foi verdadeiramente
revolucionário, tinha o sentido audaz e demolidor que não raro decorre de
contradições históricas em estado de aguda exacerbação. O mundo capitalista e
os países onde desgraçadamente o socialismo havia sido traído tremiam diante do
furor de mais de 600 milhões de jovens que resolveram torpedear as ruas e
afrontar as instituições com o pujante brado do seu inconformismo. No Brasil,
os estudantes iam à forra com o regime militar instalado quatro anos antes. No
Rio de Janeiro, a 28 de março, o secundarista Edson Luiz de Lima Souto fora
assassinado pela polícia. Havia um clima de sedição juvenil.
Concentramo-nos
na praça Santos Andrade, a partir das sete horas da manhã de 14 de maio.
Curávamo-nos,
ainda, das feridas provocados pelo confronto de domingo, no Centro Politécnico.
Dos quase três mil estudantes - entre universitários e secundaristas - reunidos
na praça, apenas 80 de nós sabíamos que a convocação inicial - juntar-se ali
para, em seguida, marchar ao Centro Politécnico - era manobra diversionista
para engambelar a polícia. Nosso destino era a Reitoria.
Marchamos
até lá em duas espessas colunas, uma seguindo pela rua XV, outra pela Amintas
de Barros. Às oito horas já estávamos ocupando as quatro esquinas da quadra e
erguendo barricadas.
Obtivemos
a solidariedade dos operários de uma construção na esquina das ruas XV e Dr.
Faivre.
Empregamos
as barras de ferro que os trabalhadores nos ofereceram, para descalçar as ruas
dos paralelepípedos e construir barricadas de mais ou menos 60 centímetros de
largura por quase metro e meio de altura. Interceptamos veículos oficiais e
usamo-los para reforçar o bloqueio. Seriam explodidos, caso houvesse repressão.
Estávamos armados, estupidamente armados com bolas de gude, rolhas de cortiça,
estilingues e rojões. E éramos milhares. E nos protegiam barricadas
indevassáveis.
Pouco
depois das nove horas, um estudante estrategicamente disposto na cobertura de
um prédio no centro da cidade, munido de walkie-talkie, em contato com outro
postado no terraço da Reitoria, dava o alarme: as tropas estavam chegando.
Primeiro a Companhia de Operações Especiais da Polícia Militar, armada com
máscaras e bombas de gás; depois, a infantaria, portando cassetetes; finalmente
a cavalaria e suas espadas. Vinham de todos os lados, estacionaram a alguns
metros das barricadas. Estávamos silenciosamente serenos. A correlação de
forças - sabíamos - estava equilibrada. Nada lembrava o combate desvantajoso no
descampado do Centro Politécnico.
Um
carro-pipa do Corpo de Bombeiros estacionou na esquina das ruas XV e Dr.
Faivre. A brigada secundarista, que estava sob meu comando, havia consumido a
madrugada fabricando uma meia dúzia de bombas molotov. Orientei que as bombas
fossem lançadas sob o caminhão ao primeiro sinal de que as mangueiras
esguichariam contra nós. Sabíamos que os rojões semeariam pânico e dispersão
entre soldados e cavalos, que os estilingues dos quase três mil estudantes
arremessariam milhares de bolas de gude contra as tropas. No alto dos prédios
vizinhos, sacos plásticos, cheios de água, estavam prontos para despencar sobre
os policiais militares. Medíamos forças, de igual para igual. Sabíamos disso e
a PM também.
Tão
logo a Reitoria foi tomada, e enquanto erguíamos nossas barricadas, começamos a
negociar através do Presidente da UPE, Stênio Salles Jacob. Primeiro por
telefone, depois pessoalmente, no Palácio Iguaçu, Stênio advertiu o então
Governador Paulo Pimentel: "Sua responsabilidade, agora, é muito maior do
que o senhor imagina. Se houver repressão, o senhor vai entrar na história como
assassino de estudantes". Pimentel orientou o secretário de Segurança,
desembargador José Munhoz de Mello, para que tentasse uma solução de consenso
com o diretor da Faculdade de Engenharia, Ralph Leitner. Foram três horas de
negociações. Enquanto isso, vivíamos na harmonia da nossa comuna. Passeávamos
pelo território conquistado, conversávamos em grupos, alguns jogavam cartas,
outros namoravam. Sentíamo-nos em paz.
Às
11 horas e cinco minutos, o desembargador Munhoz de Mello chegou para
comunicar, pessoalmente, o resultado dos entendimentos.
-
Vocês tem a garantia, minha e do diretor da Faculdade de Engenharia, de que as
matrículas para o curso noturno não serão abertas até se conseguir a gratuidade
do curso.
- E
as tropas, secretário? - indagou Jurandyr Rios Garçoni, presidente do DCE.
-
Serão recolhidas, todas elas - afiançou o secretário.
Depois,
arrematou:
-
Podem ficar descansados, ninguém vai ser preso.
A
liderança comunicou aos demais o teor do acordo. Ouviu-se um brado quase
uníssono de "Vencemos! Vencemos!" e o espocar ensurdecedor dos rojões
que seriam destinados à polícia. Rapidamente desocupamos os prédios, desfizemos
as barricadas e saímos em passeata pela rua XV, até a praça Osório, puxando
conosco, atado à mesma corda que ajudara a derrubá-lo, o busto arranhado do
reitor Suplicy, subtraído do nariz e de uma das orelhas.
Dias
mais tarde, o Conselho Universitário reuniu-se e extinguiu o pagamento de anuidades
na Universidade Federal do Paraná. Nós, verdadeiros communardas da simplória
Curitiba, enchíamo-nos de satisfação e glória.
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