Por Kel Campos e Thaís
Campolina.
Uma mulher pobre, dependente
química e em situação de rua foi levada por meio de condução coercitiva para
ser esterilizada. O caso aconteceu Mococa, São Paulo, e foi exposto pelo
professor Oscar Vilhena em sua coluna na Folha de São Paulo.
Um membro do Ministério
Público entendeu que Janaína deveria ser esterilizada e a seu pedido um juiz
autorizou tanto o procedimento quanto a condução coercitiva sem nomear um
defensor para ela, fazer audiência ou pedir algum comprovante de consentimento.
Não houve direito ao
contraditório e ampla defesa, assegurados pela Constituição Federal. Ela foi
tratada como incapaz de decidir o próprio rumo de sua história. Sequer um
curador foi nomeado para fazer uma defesa. É fato que a nomeação de um curador
não garantiria uma defesa eficaz, mas ao menos lhe garantiria alguma. Ainda que
um recurso aponte a falha no procedimento e venha a anular a decisão do juiz, a
violência cometida contra Janaína jamais será anulada. O que ela passou é
irreversível.
Acesso à justiça, dignidade
da pessoa humana, direitos reprodutivos e sexuais, devido processo legal e
outros institutos jurídicos foram violados. A violência institucional veio
revestida de uma verniz de proteção. Mas, por baixo de qualquer camuflagem, o
que existiu foi uma eugenia sem pudores. A violação aos direitos individuais é
pungente.
As autoridades que agravaram
os rumos da vida de Janaína confundem política de saúde pública com limpeza
social. Não é possível compreender a situação como cuidado com ela ou com sua
prole, porque a preocupação por trás das camadas de violência que ela sofreu é
de que ela se reproduza e aumente a população de pessoas na mesma condição.
Eles querem garantir que as ruas estejam livres de pessoas como Janaína e só.
O útero ainda é considerado
um receptáculo essencial para o Estado, para o capitalismo e para o
patriarcado. O controle do corpo da mulher se dá por causa da necessidade de
haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive
econômicas. A reprodução é tratada como algo além do desejo individual da
mulher, ela tem uma função numa sociedade como a nossa.
A imposição da maternidade
existe. A criminalização e o tabu do aborto é um exemplo. Outro é a cobrança
cultural que atinge a mulher que se casa de ter filhos e ser a responsável por
eles. Mas o controle do corpo vai além, no Brasil, ainda há uma dificuldade
enorme de conseguir fazer uma laqueadura por escolha. Os requisitos são ter
mais de 25 anos ou 2 filhos vivos, mas na prática eles não bastam. Médicos de
plano de saúde ou do SUS colocam obstáculos. Para as mulheres casadas ainda é
imposta a autorização do marido.
As mulheres são tratadas
pelo Estado e por todos os outros setores da sociedade como seres que carregam
a função de ter filhos, independente de suas subjetividades. Mas o controle
político, social e jurídico da reprodução feminina também aparece em outras
formas. Determinadas mulheres não são vistas como mulheres que devem ser mães.
A maternidade tem um lugar. Ela é vista como parte do casamento, por exemplo.
Mas esse caso mostra que a questão vai muito além disso. Ela pode ser um caso
de eugenia.
Enquanto a laqueadura é
dificultada para muitas, a esterilização é imposta para outras.
Certas mulheres têm sua
capacidade reprodutiva questionada porque alguns consideram que elas podem
gerar alguém que não é interessante para sociedade de acordo com uma visão
baseada em limpeza social. Janaína é uma delas. Ela foi tratada como mulher de
segunda categoria, sub-gente. Nessa relação jurídica que foi exposta, ela não
estava na condição de um ser humano dotado de direitos e garantias individuais.
Ela foi desumanizada.
A criminalização do aborto,
que mata e mutila principalmente as pobres e as negras, a laqueadura que é de
acesso dificultado para a maioria, o abandono do Estado, que é uma rotina que
se soma à condição de opressão da mulher quando ela é miserável, e também a
esterilização, que alcança a camada mais vulnerável da população, são alguns
dos exemplos de como a autonomia e a dignidade de mulheres são postas de lado.
A autonomia não é um postulado jurídico geralmente aplicável às mulheres que
vivem no Brasil, especialmente àquelas que estão em situação de vulnerabilidade
e sofrem também com o racismo e a miséria. São elas as principais vítimas de
certas aberrações jurídicas que vemos acontecer no país, de modo que poderíamos
pensar que ainda vige o “in dubio pro machismo*”.
A decisão do juiz é eivada
de completa irreversibilidade. Não só a fertilidade de Janaína foi exterminada.
A determinação judicial também traduz a perpetuação de sua vulnerabilidade,
nenhuma esperança de alteração de sua condição lhe foi oferecida ou foi
cogitada como possibilidade. Não se trata de uma exclusão pura e simples. É uma
evidente demarcação do único lugar que ela pode ocupar nessa sociedade que é a
de somar um elemento ao cenário urbano da cidade que incomoda os passantes.
A desumanização que Janaínas
e suas proles sofrem é reforçada com aos aplausos que a decisão teve por
parcela da população que entende que a esterilização é uma ferramenta útil para
combater a existência dos miseráveis, sem pensar em alternativas para o fim da
miserabilidade. Pessoas que não percebem que o igual acesso à justiça, à saúde,
à educação e à moradia estão longe de ser realidade para pessoas em situação de
rua e ignoram a perpetuação do abandono.
Os defensores da subtração
de seus direitos à revelia da dignidade das pessoas não se importaram com a
autonomia de Janaína. Tudo em nome de um eugenismo que não cabe em qualquer
conceito de saúde pública. Nesse caso, os instrumentos do Direito e da Justiça
foram utilizados para controlar um corpo. Os direitos dessa mulher foram postos
de lado por homens que consideravam que o lugar dela era outro. Um lugar fora
do escopo da dignidade da pessoa humana.
*A expressão original ”in
dubio pro reo” é um brocardo jurídico que nos alerta que no direito penal
decide-se a favor do réu quando há dúvidas sobre a sua responsabilidade
FONTE: Porte da Revista Forum
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