Por Ricardo Antunes e
Marcelo Ridenti.
50 anos depois do mês de
maio de 1968, Ricardo Antunes e Marcelo Ridenti escrevem sobre os sentidos e os
legados desse ano incendiário. O artigo foi elaborado originalmente para o
dossiê especial da revista Margem Esquerda #11 sobre o tema. Em homenagem à
efeméride, uma promoção imperdível: quem fizer sua assinatura bianual da
revista até o final da semana leva de presente a enciclopédia dos anos 60
escrita por Tariq Ali: o livraço O poder das barricadas: uma autobiografia dos
anos 60. Saiba como garantir o seu exemplar ao final deste post. Boa leitura!
O
contexto da crise
Presenciamos em 1968 a era
das múltiplas explosões e revoltas no mundo todo: dos operários, dos
estudantes, das mulheres, dos negros, dos movimentos ambientalistas e dos
homossexuais, entre tantas outras formas de levante e de descontentamento
social e político. No que se refere ao Brasil, apesar da influência de fatores
externos e da identidade com movimentos contestadores de outros países, 1968
teve suas especificidades. Por exemplo, o movimento estudantil, deflagrado em
março, seguiu uma dinâmica de luta específica e um calendário político próprio
anterior ao famoso maio de 1968 na França. Do mesmo modo, as greves dos
metalúrgicos de Osasco (região industrial da Grande São Paulo), desencadeada em
julho, e as greves de Contagem (região industrial da Grande Belo Horizonte),
deflagradas em abril e outubro do mesmo ano, foram muito marcadas pela cena
brasileira, então em plena luta contra a ditadura militar.
Isso não significa que os
brasileiros não estivessem sintonizados com as manifestações que ocorriam mundo
afora. Havia uma série de aspectos comuns, intensificados pelo “clima político”
que imperava no cenário mundial naquele ano. Em diferentes medidas, havia
similaridade de condições, como a industrialização avançada, a crescente
urbanização, a consolidação dos modos de vida e da cultura das metrópoles, a
massificação dada pela indústria cultural, o aumento e a diversificação do
proletariado e das classes médias assalariadas, a importância dos jovens na
composição etária da população e o acesso crescente ao ensino superior, além da
incapacidade do poder constituído de representar as sociedades que se
renovavam. Se esses condicionantes mais estruturais não explicam por si sós as
ondas de rebeldia e de revolução, eles ofereceram ao menos o solo onde
floresceram as ações políticas e culturais diferenciadas que caracterizam 1968
no Brasil. E, para compreendê-lo, é preciso lembrar dois movimentos,
relativamente distintos em suas origens, mas bastante articulados em sua
processualidade: o movimento estudantil e as greves operárias.
O movimento estudantil
O ano de 1968 iniciou-se no
Brasil com a eclosão de várias manifestações estudantis. Os estudantes
reivindicavam ensino público e gratuito para todos, democratização e melhoria
da qualidade do ensino superior, com maior participação estudantil nas decisões,
e mais verbas para as pesquisas voltadas para a resolução dos problemas
econômicos e sociais do país. Também contestavam a ditadura implantada com o
golpe de 1964 e o cerceamento das liberdades democráticas. A maioria desses
universitários estudava em universidades públicas, mas o acesso ao ensino
superior era restrito: havia muito mais procura que oferta de vagas.
As manifestações esporádicas
dos estudantes vinham sendo reprimidas desde 1966. Contudo, as rebeliões só
desabrocharam realmente em 1968. Em 28 de março daquele ano, a polícia invadiu
o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, frequentado especialmente por
secundaristas pobres, entre eles Edson Luís de Lima Souto, que foi morto.
Passeatas de protesto espalharam-se por todo o país a partir de então.
Ao mesmo tempo, esboçavam-se
movimentos de contestação no meio operário e em parcelas do sindicalismo
brasileiro. Nas comemorações do 1o de Maio, em São Paulo, operários e
estudantes apedrejaram o palanque em que discursavam sindicalistas e o governador
do Estado, Abreu Sodré.
Em junho de 1968, o
movimento estudantil atingiu seu ápice. As passeatas, as greves e as ocupações
das faculdades se generalizaram. O Rio de Janeiro serviu como cenário
principal. Ali ocorreu a célebre Passeata dos Cem Mil, no dia 26 de junho:
estudantes, intelectuais, artistas, religiosos e populares foram às ruas para
protestar contra a ditadura e a repressão policial. O governo não coibiu a
passeata por causa da pressão pública. Foi formada uma ampla comissão para
dialogar com o governo, sem sucesso. Enquanto isso, vários atentados eram
praticados pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), uma organização
paramilitar de extrema-direita composta por estudantes e policiais e financiada
por grandes grupos capitalistas, com o claro apoio da ditadura.
A repressão se intensificou.
A Universidade de Brasília foi invadida pela polícia em 29 de agosto. Em São
Paulo, no dia de 3 de outubro, um jovem foi assassinado na Faculdade de
Filosofia, após o ataque de estudantes e de paramilitares de direita abrigados
na Universidade Mackenzie. Em 15 de outubro, foi desmantelado o Congresso da
União Nacional dos Estudantes (UNE), que ocorreria em Ibiúna, no interior
paulista. Todos os cerca de setecentos universitários presentes foram presos, o
que selou a derrota do movimento estudantil brasileiro. Vários deles passaram
então para a militância política clandestina, unindo-se a organizações de
esquerda e vinculando-se até à luta armada, que praticou suas primeiras ações
já em 1968 e se intensificou nos anos seguintes.
A contestação radical à
ordem estabelecida espalhou-se pelo cinema, pelo teatro, pela música popular,
pela literatura e pelas artes plásticas. Nos anos 1960, manifestações culturais
diferenciadas cantavam em verso e prosa a esperada “revolução brasileira”, que
deveria basear-se na ação das massas populares na qual a intelectualidade de
esquerda pretendia engajar-se e mesmo liderar.
O
movimento operário
Mas havia outra figura
social presente nesse ciclo de rebeliões mundiais: o operário-massa, a parcela
hegemônica do proletariado da era taylorista-fordista. As lutas de classes
ocorridas em 1968 solapavam o domínio do capital pela base e traziam à tona a
possibilidade de uma hegemonia (ou uma contra-hegemonia) oriunda do mundo do
trabalho.
Os operários estampavam
desse modo seu descontentamento com a alternativa socialdemocrata, predominante
nos sindicatos e nos partidos, que reivindicavam a representação das forças
sociais do trabalho e seguiam uma via negocial, institucional e contratualista
dentro dos marcos do “compromisso social-democrático”. Se esse traço esteve
presente nas lutas operárias na França, em 1968, e, no ano seguinte, no Outono
Quente na Itália, e ainda no Cordobazo, na Argentina, entre tantas outras em
outros países, no Brasil as greves tinham um claro sentido de confronto, tanto
com a ditadura militar, que cerceava a liberdade e a autonomia sindicais,
quanto com a política econômica, que se fundava na superexploração do trabalho.
A repressão ao movimento
operário e sindical era condição necessária para que o golpe militar pudesse
criar novos condicionantes para a expansão capitalista e sua maior
internacionalização no Brasil. Fortemente repressiva, a ditadura militar cassou
os partidos políticos e criou dois partidos oficiais apenas; proibiu as greves,
interveio em diversos sindicatos e decretou a ilegalidade da Central Geral dos
Trabalhadores e da UNE.
Depois de alguns anos de
resistência, foi no início de 1968 que a luta operária voltou mais forte e mais
ofensiva. Em abril, setores sindicais de esquerda lideraram uma greve em
Contagem que levou a resultados positivos: a ditadura militar, surpreendida
pelo ressurgimento do movimento operário, acabou cedendo às reivindicações
trabalhistas. Foi a primeira vitória de uma greve operária depois de 1964.
Novos núcleos se formaram em Contagem e Osasco, vinculados sobretudo ao
movimento operário católico de esquerda e a militantes e simpatizantes de
organizações políticas mais críticas e radicais, à esquerda do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Os setores mais moderados do sindicalismo organizaram-se no
Movimento Intersindical Antiarrocho.
Mas foi no mês de julho de
1968, em Osasco, que os operários realizaram uma greve que se tornaria
lendária. A cidade era considerada um pólo de movimentos mais à esquerda em
razão da atração exercida pela oposição sindical, que venceu as eleições de
1967 para a direção do Sindicato dos Metalúrgicos.
Antecipando-se à greve geral
que seria realizada em outubro de 1968, mês do dissídio coletivo dos
metalúrgicos, a direção sindical de Osasco esperava estendê-la para outras
regiões do país. Iniciada no dia 16 de julho, com a ocupação da Cobrasma, a
greve atingiu as empresas Barreto Keller, Braseixos, Granada, Lonaflex e Brown
Boveri. No dia seguinte, o Ministério do Trabalho declarou a ilegalidade da
greve e determinou intervenção no sindicato. As forças militares controlavam
todas as saídas da cidade, e as fábricas paralisadas foram cercadas e
invadidas. A partir de então, acabou-se toda e qualquer possibilidade de
manutenção e ampliação da greve. Quatro dias depois de iniciada a greve, os
operários retornaram ao trabalho. Fora derrotada a greve mais importante até
então deflagrada contra a ditadura militar.
Os dirigentes sindicais mais
combativos exilaram-se ou passaram a atuar clandestinamente. Mais tarde, vários
deles aderiram às distintas organizações de esquerda que participaram da luta
armada contra a ditadura.
Fazendo um balanço crítico
do movimento, José Ibrahim, principal líder grevista, disse:
“O governo estava em crise,
ele não tinha saída, o problema era aguçar o conflito, transformar a crise
política em crise militar. Daí vinha nossa concepção insurrecional de greve. O
objetivo era levar a massa, através de uma radicalização crescente, a um
conflito com as forças de repressão. Foi essa concepção que nos guiou quando,
em julho de 1968, decidimos desencadear a greve.”
Em outubro, animados pela
vitória de abril, os operários de Contagem iniciaram outra greve por melhores
condições de trabalho e contra o arrocho salarial. Mas o contexto da ditadura
militar era de claro recrudescimento. A paralisação durou poucos dias e houve
uma violenta repressão aos grevistas, o Sindicato sofreu intervenção e sua
direção foi destituída. Ocorria, então, mais uma violenta derrota do movimento
operário, que levou anos para se recuperar. O 1968 brasileiro se encerrou com a
dura repressão à ação operário-estudantil por parte da ditadura militar.
Mas a luta pela criação de
comissões de fábrica, contra o despotismo fabril, a superexploração do trabalho
e a estrutura sindical atrelada ao Estado, e em claro confronto com a ditadura
militar, deixou raízes sólidas, que ressurgiram de outro modo e sob outra forma
dez anos depois, especialmente na luta das oposições sindicais.
O
desfecho
Em 13 de dezembro de 1968, a
ditadura militar acentuou seu lado mais repressivo: decretou o Ato Institucional
Número 5 (AI-5), conhecido como “o golpe dentro do golpe”. O terrorismo de
Estado, que prevaleceria até meados dos anos 1970, foi oficializado. O
Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais foram postos em
recesso e o Governo passou a ter plenos poderes para suspender direitos
políticos dos cidadãos, legislar por decreto, julgar crimes políticos em
tribunais militares, cassar mandatos eletivos, demitir ou aposentar juízes e
outros funcionários públicos etc. Simultaneamente, generalizavam-se as prisões
de oposicionistas e o uso da tortura e do assassinato em nome da manutenção da
“segurança nacional”, considerada indispensável para o “desenvolvimento” da
economia e do que mais tarde se denominaria “o milagre brasileiro”.
Inúmeros estudantes,
operários, intelectuais, políticos e outros oposicionistas dos mais diversos
matizes foram presos, cassados, torturados, mortos ou exilados após a edição do
AI-5. Foi imposta uma rígida censura aos meios de comunicação e às
manifestações artísticas. O regime militar punha fim assim à luta política e
cultural daquele período, reprimindo duramente qualquer forma de oposição. Os
“anos de chumbo” viriam a suceder ao “ano rebelde” de 1968.
Como conclusão, diríamos que
os dois principais movimentos que caracterizam 1968 no Brasil tiveram muitas
similitudes: ambos estavam à esquerda dos movimentos mais tradicionais e
propunham uma alternativa ao PCB e à sua política de moderação, que dominou os
movimentos operário e estudantil pré-1964. Mas as lutas estudantis e operárias
de 1968 no Brasil não conseguiram viabilizar uma alternativa de massa, e
exauriu-se em seu vanguardismo.
O movimento estudantil,
derrotado, engrossou com suas lideranças e militantes as fileiras da luta
armada contra a ditadura militar. O movimento operário, depois das derrotas de
Contagem e Osasco, refluiu fortemente e vários de seus quadros mais à esquerda
também se incorporaram à luta armada. Ambos desnudaram o sentido profundamente
ditatorial e terrorista do Estado brasileiro e foram, por isso, violentamente
reprimidos.
Não foi por acaso, então,
que tanto em Osasco como em Contagem pudemos presenciar uma ação operária com
significativa presença estudantil, especialmente de estudantes que militavam
por organizações de esquerda e ingressaram nas fileiras da vanguarda operária
para melhor influenciar as ações dos trabalhadores.
Talvez esse seja um traço
marcante do ano de 1968 no Brasil, muito diferente daquele que se viu tanto no
movimento que eclodiu dez anos depois, com as greves metalúrgicas do ABC
paulista, quanto no movimento estudantil que voltou a tomar as ruas de várias
cidades brasileiras na segunda metade dos anos 1970, mais uma vez contra a
ditadura militar. Mas essa já é outra história.
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