Os atuais habitantes deste planeta desfrutam de um privilégio duvidoso,
mas ainda mais raro do que o de ter comemorado a chegada do terceiro milênio. É
compartilhado apenas com a geração que, há quase 12 mil anos, começou a
experimentar com agricultura enquanto se derretia a Idade do Gelo e mirravam os
campos de caça.
Por
Antonio Luiz M. C. Costa, na Carta Capital
Ou,
se ampliarmos o conceito de “humano”, com os hominídeos ancestrais que, 2,58
milhões de anos antes, enquanto surgiam as geleiras, desceram das árvores para
começar a se alimentar de carniça. É a segunda ou terceira expulsão da
humanidade do Paraíso e a primeira da qual ela é a única culpada.
No
35º Congresso Geológico Internacional, de 27 de agosto a 4 de setembro na
Cidade do Cabo, África do Sul, a comissão encarregada pela União Internacional
das Ciências Geológicas (UICG) recomendou o reconhecimento oficial do início de
uma nova época geológica, chamada Antropoceno. Para melhor se compreender o
significado disso, recorde-se como os geólogos dividem os 4,55 bilhões de anos
da história da Terra.
Para
começar, em quatro éons: Hadeano (sem vida), Arqueano (primeiras formas de vida
bacteriana), Proterozoico (células complexas e primeiros multicelulares) e
Fanerozoico (formas de vida diversificadas). Cada éon divide-se em várias eras,
que no caso do Fanerozoico são três: Paleozoico (plantas, peixes, insetos,
anfíbios e primeiros répteis), Mesozoico (“era dos dinossauros”) e Cenozoico
(“era dos mamíferos”). O Mesozoico divide-se em três períodos, Triássico,
Jurássico e Cretáceo, e o Cenozoico em outros três: Paleogeno, Neogeno e
Antropogeno (mais conhecido como Quaternário).
Cada
período divide-se, por sua vez, em duas a quatro épocas, a maioria das quais
com duração de 5 milhões a 30 milhões de anos, cada uma marcada por mudanças
notáveis na composição das camadas de rochas e no caráter de distribuição de fósseis,
resultantes de alterações drásticas do ambiente. Contavam-se 37 épocas desde o
início do Paleozoico, sete das quais no Cenozoico, incluídas as duas que formam
o Quaternário: o Pleistoceno, “Idade do Gelo”, no qual as geleiras cobriram a
maior parte da América do Norte e da Europa, e o Holoceno, quando o clima
voltou a se aquecer e surgiram a agricultura e a civilização.
O
Antropoceno é, portanto, a 38ª época do Fanerozoico e a terceira do
Quaternário. O Nobel de Química Paul Crutzen, que em 2000 foi o primeiro a
propor a ideia com seriedade, indicou 1800 como o início do “primeiro estágio”,
de difusão das máquinas a vapor industriais, consumo maciço de combustíveis
fósseis e aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, e 1945 do
“segundo estágio”, de aceleração súbita da industrialização e do crescimento
demográfico.
A
maioria dos membros da comissão da UICG sugere uma data precisa: 16 de julho de
1945, detonação da primeira bomba atômica, o experimento Trinity.
Outros
sugeriram os anos de 1610, data de uma marcada retração no gás carbônico
atmosférico e expansão de florestas devidas ao colapso das civilizações e ao
genocídio das populações ameríndias após a conquista europeia (acompanhada pela
redistribuição de espécies vegetais e animais pelas navegações) e 1964, auge do
depósito de isótopos radioativos pelos testes nucleares pela superfície da
Terra.
Do
ponto de vista estritamente técnico, essas datas teriam a vantagem de estar
mais claramente marcadas na geologia, mas os próprios geólogos parecem, na sua
maioria, inclinados a deixar o cientificismo de lado para enfatizar o
significado ético, social e histórico dessa virada. A detonação da primeira
bomba atômica apropriada como símbolo, um equivalente real e laico do momento
mítico no qual Adão e Eva comeram o fruto proibido. A Revolução Industrial é
ainda mais importante pelas consequências (enquanto não houver uma guerra
nuclear generalizada), mas é um processo de mais de dois séculos com o qual nos
acostumamos demais.
A
questão é que o impacto da humanidade no funcionamento do ambiente
planetáriotornou-se comparável a grandes forças da natureza, como a expansão e
retração das geleiras, ou mesmo o meteorito cuja queda teria liquidado os
dinossauros.
A
composição da atmosfera está sendo drasticamente modificada – de, no máximo,
280 partes por milhão de há mais de 300 mil anos (antes do surgimento do Homo
sapiens) até a invenção de James Watt para mais de 400 hoje –, com efeitos na
temperatura média do planeta, no clima e na acidificação dos oceanos e, em
breve, no nível do mar. Isótopos e compostos químicos persistentes e
inexistentes na natureza, do plutônio ao PVC, misturaram-se ao solo e à água e
deixam marcas indeléveis nos sedimentos marinhos e lacustres, nas geleiras e
nas estalactites e estalagmites das cavernas.
Espécies
de animais e vegetais extinguem-se a um ritmo cem a mil vezes mais rápido do
que em tempos normais. A maioria das espécies selvagens de médio e grande porte
está hoje extinta ou aparentemente condenada – inclusive algumas das mais
icônicas, como leões, rinocerontes, onças e elefantes – e os domésticos se
multiplicaram absurdamente.
Não
foi uma mudança de grau, mas de qualidade, da qual nos damos conta tarde demais
para revertê-la. É possível, no máximo, tentar desacelerá-la, e isso se mudarem
de direção os ventos direitistas hoje prevalecentes na política e na economia e
o desenvolvimento, promoção e difusão de tecnologias mais limpas se tornarem a
prioridade máxima.
Não
adianta fechar os olhos ao inexorável: a população do planeta atingirá pelo
menos 9 bilhões em 2050 e, enquanto não se cogitar de mudar radicalmente o
sistema econômico, o crescimento econômico a qualquer custo continua a ser
objetivo de pobres sufocados pela miséria e pelo desemprego, da classe média em
busca de melhores oportunidades e de ricos atrás de lucros ainda maiores. Para
não falar de indivíduos, governos e empresas não enxergam além das dificuldades
presentes ou, quando muito, do tempo de vida dos atuais dirigentes.
Restam
duas possibilidades. Uma é a humanidade aprender a sustentar um ponto de
equilíbrio artificial com o ambiente terrestre, no qual seja possível
sobreviver ainda que em condições muito diferentes daquelas às quais a espécie
humana se adaptou biologicamente e nas quais construiu suas culturas e
civilizações. Será um mundo mais quente, de ar viciado, oceanos ácidos, terras
habitáveis reduzidas em extensão, sem consumo de combustíveis fósseis ou
materiais não recicláveis e – o que talvez seja ainda mais difícil de imaginar
– sem crescimento econômico ou capitalismo tal como os entendemos hoje.
Não
é possível a produção crescer sem fim em um mundo finito e, sem perspectiva de
crescimento indefinido, não se pode falar de acumulação de capital e
concorrência, a não ser no sentido mais primitivo, predatório e suicida.
Imagine-se um mundo de crescimento zero, no qual o consumo seja criteriosamente
racionado e restrito a substâncias recicláveis, todo desperdício seja um crime,
nenhum território novo possa ser ocupado e nenhuma inovação possa ser testada
sem controles e autorizações especiais. Nossos descendentes aprenderão sobre
como nossa geração os expulsou do Paraíso da irresponsabilidade ambiental e os
obrigou a tomar consciência do bem e do mal contidos em cada pequena escolha de
consumo.
Nem
mesmo a eventual exploração da Lua, de Marte ou dos asteroides ou do planeta
recém-descoberto em Próxima Centauri permitiria fugir da questão. Se acaso for
possível sobreviver lá, será igualmente necessário conservar em equilíbrio
forçado um ambiente artificial finito, ou a aventura humana nesses mundos seria
muito mais breve do que foi aqui até agora.
A
outra possibilidade é esse equilíbrio não ser atingido e o ambiente entrar em
uma espiral incontrolável de deterioração ambiental até a vida humana se tornar
impossível. Tanto pior para a humanidade e para a maioria das espécies vivas
ainda existentes, mas o planeta recuperou-se de crises comparáveis. Um
extraterrestre de passagem encontraria daqui a dois séculos um mar contaminado
e um solo erodido, habitado apenas por ratos, baratas e outras espécies
igualmente resistentes e adaptáveis. Mas, se voltar a averiguá-lo depois de 20
milhões de anos, provavelmente encontrará fauna e flora renovadas pela
evolução, tão surpreendente para nós quanto seriam as baleias, girafas e
passarinhos para um dinossauro.
Com
a orientação do geólogo Dougal Dixon, a curiosa minissérie Futuro Selvagem (no
original, The Future Is Wild) da britânica BBC, de 2002, fez uma especulação
inteligente sobre essa hipótese e imaginou fascinantes animais do futuro
distante, descendentes plausíveis das espécies mais capazes de sobreviver ao
desastre humano – roedores, insetos, aranhas, certos peixes e moluscos.
Tipicamente,
o estadunidense Discovery Channel infantilizou a narração e a premissa e fez da
advertência um escapismo literal. Contou que isso se daria não depois da
extinção da humanidade, mas após sua migração para outros planetas, assim como
certos pais se poupam de explicar a morte às crianças, dizendo-lhes que a avó
se mudou para longe e nunca mais vai voltar.
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