Por
Roberto Marinucci
Nos
últimos meses a imprensa internacional tem relatado graves episódios de tráfico
de pessoas e contrabando de migrantes. Podemos citar o caso dos muçulmanos
rohingya na Ásia, dos imigrantes e refugiados asiáticos e africanos na Sicília
ou dos refugiados eritreus na península do Sinai. São episódios trágicos em que
o tráfico de pessoas se entrecruza com a migração. Migrantes forçados ou
voluntários ficam envolvidos em redes de tráfico; se tornam vítimas de
exploração sexual e de trabalho forçado, são traficadas, deslocadas.
Como erradicar o trabalho forçado e a mercantilização de seres humanos? Em termos políticos, geralmente, o foco da repressão tende a ser prioritário. A fiscalização e a militarização das fronteiras – incluindo a construção de barreiras, valas ou muros – tornaram-se práticas cada vez mais comuns. Uma verdadeira obsessão, como assevera Michel Foucher. É do mês de junho de 2015 o anúncio da construção de um muro entre Hungria e Sérvia. Na União Europeia há planos de bombardear barcos nas costas africanas para combater o tráfico. Cabe lembrar que a pesca é uma das principais atividades econômicas da região: como distinguir os barcos usados para pesca daqueles usados para o tráfico de pessoas ou contrabando de migrantes? Os drones fazem isso?
Mas
a questão mais importante é a confusão proposital entre tráfico de pessoas e
migração. É evidente que há alguma relação entre os dois fenômenos, mas são
práticas diferentes. A confusão entre migração irregular e tráfico para fins de
exploração é utilizada de forma instrumental para legitimar políticas
migratórias restritivas e, até mesmo, a violação dos direitos dos imigrantes.
Conforme os meios de comunicação ocidentais, o atravessador é sempre um
criminoso, mesmo quando permite o deslocamento de solicitantes de refúgio.
Pessoas traficadas ou solicitantes de refúgio, por vezes, são tratados como
"meros imigrantes irregulares” e, frequentemente, devolvidos de imediato –
encaliente – sem levar em conta seus direitos. Nessa perspectiva, a luta contra
o tráfico identifica-se com a luta contra a imigração irregular.
Na
realidade, a principal causa do aumento do tráfico de pessoas em termos
internacionais na atualidade é constituída justamente pelas políticas
migratórias restritivas e a pela ausência de canais regulares de migração para
os solicitantes de refúgio. Por exemplo, pessoas que fogem da Síria ou da
Eritreia e querem solicitar refúgio são obrigadas a recorrer a intermediários
que, dependendo dos casos, podem ser mais ou menos honestos, mais ou menos caros,
mais ou menos escrupulosos e, sobretudo, smugglers ou traffickers: meros
atravessadores (coyotes, scafisti ou passeurs) ou traficantes de pessoas para
fins de trabalho forçado ou exploração sexual. Dessa maneira, o migrante –
voluntário ou forçado – que inicia o deslocamento geográfico como estratégia de
sobrevivência biológica ou social, corre o risco de ficar envolvido numa rede
de traficantes. Em síntese, as políticas migratórias restritivas, além de
violar direitos dos migrantes, alimentam a prática do tráfico de pessoa.
A
Anistia Internacional, no recente relatório "La vergüenza de Europa, a pique.
Omisión de socorro a refugiados y migrantes e nel mar”, ressalta os custos
humanos das políticas migratórias irresponsáveis – ou vergonhosas, na ótica do
informe – da União Europeia. A passagem da operação Mare Nostrum para Triton
implicou na redução do campo de ação, dos gastos e dos meios de socorro, o que
provocou um súbito aumento das vítimas: em 2015, uma a cada 23 pessoas que
tentou a travessia no Mediterrâneo morreu afogada, contra uma a cada 53 do ano
anterior, à época da operação Mare Nostrum. E não deixa de ser paradoxal que os
países que alimentam essas políticas restritivas ou omissas sejam aqueles que
ostentam indignação em relação ao tráfico de pessoas, às novas formas de
escravidão ou ao tráfico de órgãos. Será que a escravidão de seres humanos é
mais criminosa do que a omissão de socorro de pessoas que estão se afogando?
No
Brasil, dados recentes do Ministério do Trabalho revelam mudanças no perfil das
pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão: elas têm mais educação
(44% eram analfabetos, em 2007, contra 14%, em 2014), mais idade (46% dos
libertados são jovens, contra 56% em 2007) e, sobretudo, há um maior número de
mulheres (de 3%, em 2007, para 10%, em 2014). Essas mudanças são o reflexo do
aumento da fiscalização em áreas urbanas e, talvez, da maior incidência do
trabalho análogo à escravidão. Não é por acaso que até mesmo os novos
imigrantes – haitianos, ganeses e senegaleses – estão sendo vítimas de trabalho
escravo, tanto no campo quanto nas cidades.
A
luta contra o tráfico de pessoas exige uma reformulação das políticas
migratórias na ótica dos direitos humanos. Como afirma François Crepeau,
relator especial sobre os direitos humanos dos migrantes da ONU, o fechamento
das fronteiras é impossível e só fortalece o contrabando dos migrantes e o
tráfico de seres humanos.
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