segunda-feira, 6 de julho de 2015

20 anos do coquetel anti-HIV: é preciso desvincular a doença da culpa e do pecado

Hoje, a população brasileira vive um momento diferenciado, no qual se mudam estratégias de enfrentamento ao vírus HIV, no fluxo da rede de serviços de saúde pública, no consenso de tratamento e inova-se nos métodos e possibilidades de ações de prevenção e acompanhamento dos soropositivos. Quem afirma é o frei Luiz Carlos Lunardi, assessor da Pastoral da Aids, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para ele, agora, é um momento de muita discussão no país, esclarecimento e redefinição dos papeis e demandas da causa.

"Esse processo gera uma série de preocupações e até desconforto, principalmente na sociedade civil. A epidemia ainda não está sob controle, no meu modo de ver, é necessário inovar, rever toda a logística em torno do combate às DSTs [Doenças Sexualmente Transmissíveis], HIV e Aids, e hepatites virais”, afirma.


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Novo contexto exige mudança de estratégias no enfrentamento à AIDS. Foto: Reprodução.

Em entrevista à Adital, frei Lunardi aponta que uma das grandes demandas da atualidade é que a Síndrome tem atingido mais drasticamente a população pobre, no Brasil, que têm menos condições de vida, alimentação, emprego, casa, saneamento básico. O que afeta, diretamente, a qualidade de vida dessas pessoas e dificulta o acompanhamento médico e o tratamento. Para o assessor da Pastoral, o esforço, atualmente, também foca na naturalização da Síndrome, desvinculando-a de sentidos de culpa ou de pecado.



ADITAL - Em 2015, completam-se 20 anos da criação do coquetel antirretroviral. Que balanço podemos fazer desse tratamento na vida dos soropositivos?



Frei Luiz Carlos Lunardi -Sem dúvidas, este foi um dos grandes avanços em termos da Medicina. Antes dos ARV [antirretrovirais], a pessoa que se descobria infectada pelo vírus HIV recebia uma sentença de morte, pois não havia medicamento e nada se podia fazer, a não ser esperar para que o quadro se agravasse. Com os ARV, as pessoas começaram a ter maior chance de sobreviverem, embora, com a infecção e seus agravos, e com os efeitos colaterais do medicamento. Mudou, radicalmente, o quadro da Aids no Brasil. Hoje, se vive com HIV e mesmo com Aids.



ADITAL - Tem sido, de fato, eficaz?



FLCL -Sim. Não há duvidas de que os medicamentos melhoraram a vida de muitas pessoas e evitaram muitos óbitos.



ADITAL - Nesses últimos 20 anos, quais foram os principais avanços no tratamento do vírus?



FLCL -Os medicamentos, realmente, conseguem controlar a carga viral. Manter o vírus em proporções indetectáveis nos exames. Este quadro de controle do vírus garante qualidade de vida às pessoas. O tratamento tem vários medicamentos, que possibilitam fazer composições diferentes (o chamado coquetel), dando maior chance de vida e tempo de tratamento.



ADITAL - Como isso se reflete na qualidade de vida das pessoas soropositivas?



FLCL -É fundamental a adesão ao tratamento. Tomar corretamente os medicamentos e ter os cuidados necessários com a saúde: alimentação, sono, exercícios físicos. Para as pessoas que conseguem fazer uma boa adesão ao medicamento, os antirretrovirais e as conquistas que a Medicina fez possibilitam que a pessoa continue vivendo e programando sua vida quase que normalmente. O que há em algumas pessoas são efeitos colaterais suportáveis, como em qualquer outro medicamento, e uma exigência no cuidado, pois a pessoa precisa fazer exames e consultas periódicas e aderir corretamente ao tratamento.



ADITAL - Atualmente, o Poder Público tem destinado atenção a políticas públicas nesse sentido?



FLCL -Sim, porém nem sempre são suficientes. Hoje, vivemos um momento diferenciado, no qual se mudam estratégias de tratamento, de fluxo da rede de serviços de saúde, no consenso de tratamento e inova-se nos métodos e possibilidades de ações de prevenção e acompanhamento das pessoas que vivem e convivem com HIV e Aids. É um momento de muita discussão, esclarecimento e redefinição dos papeis e do fluxo dos serviços.



Esse processo gera uma série de preocupações e até desconforto, principalmente na sociedade civil. A epidemia ainda não está sob controle, no meu modo de ver, é necessário inovar, rever toda a logística em torno do combate às DSTs [Doenças Sexualmente Transmissíveis] HIV e Aids, e hepatites virais. Penso que o governo esta agindo corretamente, pois é sua a responsabilidade pela saúde pública.



ADITAL - Que tipo de políticas públicas necessita, hoje, esse público?



FLCL – Seguramente, a epidemia da Aids atinge, de forma mais drástica, as pessoas mais pobres, as que têm menos condições de vida, alimentação, emprego, casa, saneamento básico. Estas condições afetam, diretamente, a qualidade de vida destas pessoas e dificultam o acompanhamento médico e o tratamento.



ADITAL - Como está a atuação da Pastoral da AIids hoje em dia?



FLCL -Está muito bem. Temos nosso método de trabalho bem definido e atuamos com clareza do nosso papel complementar e parceiro dos serviços de saúde e dos programas de Aids, bem como dos órgãos governamentais nas três esferas. Nossa atuação vai desde a prevenção, informação e orientação para o diagnóstico oportuno, bem como no acompanhamento e acolhimento das pessoas que vivem e convivem com HIV.



O carro-chefe da Pastoral da Aids no Brasil é a capacitação, formação de multiplicadores, para que, com suas equipes, levem à frente o trabalho diretamente nas comunidades e em áreas de maior vulnerabilidade. Atuamos de forma bem propositiva nos meios de comunicação social e na elaboração de materiais para campanhas, que mantêm sempre vivo o alerta do cuidado com a epidemia presente.



ADITAL - Houve superação de preconceitos dirigidos aos soropositivos?



FLCL -Não. Pode-se dizer ainda hoje o chavão tão batido, mas que continua verdadeiro e evidente; "A Aids não mata, o que mata é o preconceito”. Preconceito vivenciado ainda hoje por muitos profissionais de saúde, que se recusam a atender a pessoas com HIV ou atendem de forma diferenciada. Na sociedade, o preconceito ainda é forte e nos deparamos com infinitas situações de discriminação e desrespeito aos direitos da pessoa.



ADITAL - A sociedade brasileira está mais acolhedora às pessoas soropositivas?



FLCL -Há milhares de pessoas engajadas nessa luta. Bispos, padres, religiosos, religiosas, membros de outras religiões, homens e mulheres que se dedicam a essa causa. O que mais assusta é a omissão dos meios de comunicação, que pouco ou nada fazem. Muitas vezes, dificultam e, em seus programas e visões, desconstroem o trabalho feito em muitos anos. Basta lembrar o que aconteceu com a divulgação de um ou dois casos de pessoas que queriam transmitir, propositalmente, o HIV. Passou-se a ideia de que todas as pessoas com HIV agem assim, aumentando o estigma e o desejo de criminalização das pessoas com HIV.



ADITAL - Quais os desafios de hoje para a convivência com o vírus, tanto social quanto relacionada ao tratamento médico?



FLCL - Assumir a doença como algo natural, próprio da natureza humana. Desvincular a doença da culpa e do pecado. Vinculá-la, naturalmente, à função física, fisiológica natural, ao sexo. Estatísticas dão conta de que 98% das infecções são por relações sexuais desprotegidas. Informar, orientar sobre a epidemia e sobre todos os métodos de prevenção, acreditando que a pessoa bem formada e bem informada será capaz de conduzir, de forma segura, sua vida é a saída mais eficaz. A pessoa consciente é a melhor garantida.

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