Por Márcio Sotelo Felippe*
A corajosa defesa de Nabuco foi construída a partir do seguinte
raciocínio: o negro defendera-se de dois crimes anteriores, crimes da
ordem jurídica e social do Império: um, a própria escravidão; outro, a
pena de morte iminente.
Nesta última semana, em São Luís, um jovem negro, favelado, morreu linchado amarrado a um poste por ter, segundo a notícia, assaltado um bar.
O jornal Extra publicou a notícia com duas ilustrações, incrivelmente idênticas. Uma mostrava um escravo acorrentado a um tronco, submetido a açoites. Outra, o negro de São Luís, morto, cabeça pendendo amarrado a um poste de luz. É como se a foto fosse uma reprodução deliberada da primeira, uma cópia feita por um cineasta ou um fotógrafo. Nas duas cenas, pessoas olham inertes, passivas, curiosas. Profético Nabuco.
Se o jovem negro saísse vivo, sua defesa deveria ser feita com a coragem de Nabuco: ele cometeu um crime que tem a ver com crimes anteriores, os crimes da ordem social e jurídica que degradaram toda sua existência. Porque óbvio que jovens brancos de classe média não roubam botecos. Cometem outros delitos, e quando o fazem não são amarrados a um poste e linchados.
Anos mais tarde, Nabuco, já herói do abolicionismo, era célebre a ponto de ter sua figura estampada em rótulo de cigarro (Cigarros Nabuco). Um dos intelectuais mais extraordinários da história do Brasil, escreveu a frase que explica o linchamento do jovem negro favelado de São Luís e que explica muito do Brasil dos séculos seguintes. Em citação livre: a escravidão havia de tal forma pervertido e contaminado a sociedade brasileira que a moldaria ainda por muito tempo. E que não bastaria libertar escravos, mas reeducar a sociedade.
Nabuco não foi ouvido e não falta muito para termos no mercado Cigarros Bolsonaro.
A abolição foi um ato apenas jurídico e formal. O Brasil então seguiu impávido colosso ignorando o povo negro, como se nada devêssemos a eles, como se não tivéssemos um débito social derivado de um tenebroso passado de séculos de miséria e degradação escravizando seres humanos. O Brasil segue impávido colosso ignorando as gerações seguintes do povo negro, e assim o jovem negro de São Luís era livre segundo a lei. A lei que em sua majestática grandeza dá a todos o direito de jantar no Ritz e dormir embaixo da ponte, como disse Anatole France.
Anatole France disse literariamente o que críticos do Capitalismo desde sempre apontaram: a condição de sujeito de direito do trabalhador que produz a riqueza da sociedade por força de um contrato “livremente” assinado não o liberta. O constrangimento econômico difuso o faz escravo de outra forma. Então, ele é perfeitamente livre para dormir embaixo da ponte ou ir a Paris jantar no Ritz.
A opressão do povo negro é múltipla. Há o débito social histórico, essa miséria transmitida de geração a geração sem que a sociedade brasileira lembre-se de resgatá-lo. Há o preconceito. Há a exploração da estrutura capitalista, que aí é, portanto, uma sobre opressão.
Em artigo publicado nesta coluna Contracorrentes, Marcelo Semer, apoiado em levantamento da Secretaria Nacional da Juventude (trabalho coordenado por Jaqueline Sinhoreto), traz, nessa ordem de considerações, um dado irrespondível: “mais de 60% dos presos são negros (prende-se 1,5 vez o número de brancos) e uma parcela próxima a essa é composta por jovens. Quanto mais se prende, mais jovens e mais negros lotam as cadeias”.
“Puta africana”, “macaca”, “vagabunda” foram algumas das frases dirigidas a Maju, a apresentadora negra do Jornal Nacional, no Facebook. A página do Extra que estampava as duas ilustrações teve, entre 1817 comentadores, 71% favoráveis ao linchamento.
Billie Holiday cantava uma canção chamada Strange Fruit. Falava dos negros enforcados em árvores nos sul dos EUA: “árvores do sul produzem uma fruta estranha/sangue nas folhas e sangue na raiz/corpos negros balançando/fruta estranha pendurada nos álamos/pastoril cena do valente sul/os olhos inchados e a boca torcida/perfume de magnólias, doce e fresca/Depois o repentino cheiro de carne queimada/Aqui está a fruta para os corvos arrancarem/Para a chuva recolher, para o vento sugar/Para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair/Aqui está a estranha e amarga colheita”.
Aqui não são árvores, são postes de luz. Há neles uma estranha lâmpada.
Nesta última semana, em São Luís, um jovem negro, favelado, morreu linchado amarrado a um poste por ter, segundo a notícia, assaltado um bar.
O jornal Extra publicou a notícia com duas ilustrações, incrivelmente idênticas. Uma mostrava um escravo acorrentado a um tronco, submetido a açoites. Outra, o negro de São Luís, morto, cabeça pendendo amarrado a um poste de luz. É como se a foto fosse uma reprodução deliberada da primeira, uma cópia feita por um cineasta ou um fotógrafo. Nas duas cenas, pessoas olham inertes, passivas, curiosas. Profético Nabuco.
Se o jovem negro saísse vivo, sua defesa deveria ser feita com a coragem de Nabuco: ele cometeu um crime que tem a ver com crimes anteriores, os crimes da ordem social e jurídica que degradaram toda sua existência. Porque óbvio que jovens brancos de classe média não roubam botecos. Cometem outros delitos, e quando o fazem não são amarrados a um poste e linchados.
Anos mais tarde, Nabuco, já herói do abolicionismo, era célebre a ponto de ter sua figura estampada em rótulo de cigarro (Cigarros Nabuco). Um dos intelectuais mais extraordinários da história do Brasil, escreveu a frase que explica o linchamento do jovem negro favelado de São Luís e que explica muito do Brasil dos séculos seguintes. Em citação livre: a escravidão havia de tal forma pervertido e contaminado a sociedade brasileira que a moldaria ainda por muito tempo. E que não bastaria libertar escravos, mas reeducar a sociedade.
Nabuco não foi ouvido e não falta muito para termos no mercado Cigarros Bolsonaro.
A abolição foi um ato apenas jurídico e formal. O Brasil então seguiu impávido colosso ignorando o povo negro, como se nada devêssemos a eles, como se não tivéssemos um débito social derivado de um tenebroso passado de séculos de miséria e degradação escravizando seres humanos. O Brasil segue impávido colosso ignorando as gerações seguintes do povo negro, e assim o jovem negro de São Luís era livre segundo a lei. A lei que em sua majestática grandeza dá a todos o direito de jantar no Ritz e dormir embaixo da ponte, como disse Anatole France.
Anatole France disse literariamente o que críticos do Capitalismo desde sempre apontaram: a condição de sujeito de direito do trabalhador que produz a riqueza da sociedade por força de um contrato “livremente” assinado não o liberta. O constrangimento econômico difuso o faz escravo de outra forma. Então, ele é perfeitamente livre para dormir embaixo da ponte ou ir a Paris jantar no Ritz.
A opressão do povo negro é múltipla. Há o débito social histórico, essa miséria transmitida de geração a geração sem que a sociedade brasileira lembre-se de resgatá-lo. Há o preconceito. Há a exploração da estrutura capitalista, que aí é, portanto, uma sobre opressão.
Em artigo publicado nesta coluna Contracorrentes, Marcelo Semer, apoiado em levantamento da Secretaria Nacional da Juventude (trabalho coordenado por Jaqueline Sinhoreto), traz, nessa ordem de considerações, um dado irrespondível: “mais de 60% dos presos são negros (prende-se 1,5 vez o número de brancos) e uma parcela próxima a essa é composta por jovens. Quanto mais se prende, mais jovens e mais negros lotam as cadeias”.
“Puta africana”, “macaca”, “vagabunda” foram algumas das frases dirigidas a Maju, a apresentadora negra do Jornal Nacional, no Facebook. A página do Extra que estampava as duas ilustrações teve, entre 1817 comentadores, 71% favoráveis ao linchamento.
Billie Holiday cantava uma canção chamada Strange Fruit. Falava dos negros enforcados em árvores nos sul dos EUA: “árvores do sul produzem uma fruta estranha/sangue nas folhas e sangue na raiz/corpos negros balançando/fruta estranha pendurada nos álamos/pastoril cena do valente sul/os olhos inchados e a boca torcida/perfume de magnólias, doce e fresca/Depois o repentino cheiro de carne queimada/Aqui está a fruta para os corvos arrancarem/Para a chuva recolher, para o vento sugar/Para o sol apodrecer, para as árvores deixarem cair/Aqui está a estranha e amarga colheita”.
Aqui não são árvores, são postes de luz. Há neles uma estranha lâmpada.
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