Por Pedro Ekman e Bia
Barbosa*
Recentemente, a presidenta
Dilma Rousseff, pré-candidata à reeleição pelo PT, declarou que, se eleita,
enfrentará o debate acerca da regulação dos meios de comunicação. A afirmação
causou furor na mídia comercial, que não perde oportunidades para alimentar a
versão de que há um plano da esquerda para controlar a mídia e impedir críticas
ao governo. O candidato da oposição, Aécio Neves (PSDB), também se apressou a
reafirmar “o PT quer censurar a imprensa”.
Neste momento, quanto mais
confuso for o debate sobre o tema, menos resultados ele produzirá. Assim,
alguns veículos empenham-se em embaralhar as informações de forma sofisticada;
outros omitem do público informações relevantes sobre o tema; outros, ainda,
divulgam o dito pelo não dito. O esforço é um só: manter inalterada a atual
situação de concentração econômica e de ausência de diversidade e pluralidade
na mídia brasileira.
Tendo em vista esta
ostensiva operação para interditar um debate direto e transparente sobre a
regulação da mídia (ação corrente que, essa sim, caracteriza prática de
censura), vamos aos fatos, numa tentativa de desfazer o labirinto construído em
torno do assunto.
Em primeiro lugar, é preciso
lembrar que a radiodifusão é, assim como a energia, o transporte e a saúde, um
serviço público que, para ser prestado com base no interesse público, requer
regras para o seu funcionamento. No caso das emissoras de rádio e TV, a
existência dessas regras se mostra fundamental em função do impacto social que
têm as ações dos meios de comunicação de massa, espaço central para a
veiculação de informações, difusão de culturas, formação de valores e da
opinião pública.
Lembram os teóricos que a
necessidade ou não de regulação de qualquer setor e a intensidade e o formato
dessa regulação estão condicionadas justamente ao poder potencial que tal setor
tem para mudar as preferências da sociedade e dos governantes. Assim, quanto
maior o poder de um determinado setor e o desequilíbrio democrático provocado,
maiores a necessidade e a intensidade de regulação por parte do Estado.
Portanto, à medida que, ao
longo da história, crescem a presença e influência dos meios de comunicação de
massa sobre a sociedade, aumenta a necessidade de o Estado regular este poder.
Não para definir o que as emissoras podem ou não podem dizer, mas para garantir
condições mínimas de operação do serviço de forma a manter o interesse público
– e não o lucro das empresas – em primeiro lugar.
Vale lembrar também que,
além de um serviço público, a comunicação eletrônica representa um setor
econômico dos mais importantes do país. Assim como outros, precisa do
estabelecimento de regras econômicas para o seu funcionamento, de modo a coibir
a formação de oligopólios ou de um monopólio num setor estratégico para
qualquer nação.
Por fim, o simples
estabelecimento de uma regulação da radiodifusão não pode ser tachado de
cerceamento da liberdade de imprensa ou então de censura porque é isso o que
diz e pede a própria Constituição brasileira de 1988, ao estabelecer princípios
que devem ser respeitados pelos canais de rádio e TV.
No entanto, mais de vinte e
cinco anos após sua promulgação, nenhum artigo de seu capítulo V, que trata da
Comunicação Social, foi regulamentado, deixando um vazio regulatório no setor e
permitindo a consolidação de situações que contrariam os princípios ali
estabelecidos.
Os
efeitos da não regulamentação constitucional são evidentes:
O artigo 220, por exemplo,
define que não pode haver monopólio ou oligopólio na comunicação social
eletrônica. Hoje, no entanto, uma única emissora controla cerca de 70% do
mercado de TV aberta.
O artigo 221 define que a
produção regional e independente devem ser estimuladas. No entanto, 98% de toda
produção de TV no país é feita no eixo Rio-São Paulo pelas próprias emissoras
de radiodifusão, e não por produtoras independentes.
Já o artigo 223 define que o
sistema de comunicação no país deve respeitar a complementaridade entre os
setores de comunicação pública, privada e estatal. No entanto, a imensa maioria
do espectro de radiodifusão é ocupada por canais privados com fins lucrativos.
Ao mesmo tempo, as 5.000 rádios comunitárias autorizadas no país são proibidas
de operar com potência superior a 25 watts, enquanto uma única rádio comercial
privada chega a operar em potências superiores a 400.000 watts. Uma conta
simples revela o evidente desequilíbrio entre os setores.
Por fim, o artigo 54
determina que deputados e senadores não podem ser donos de concessionárias de
serviço público. No entanto, a família Sarney, os senadores Fernando Collor,
Agripino Maia e Edson Lobão Filho, entre tantos outros parlamentares, controlam
inúmeros canais em seus estados. Sem uma lei que regulamente tal artigo, ele –
como os demais da Constituição – torna-se letra morta e o poder político segue
promiscuamente ligado ao poder midiático.
Regular os meios de
comunicação de massa neste sentido está longe, portanto, de estabelecer
práticas de censura da mídia. Trata-se de uma exigência constitucional de
definir regras concretas para o funcionamento destes veículos no sentido de
atender aos objetivos definidos pela sociedade em sua carta maior.
Regular
a radiodifusão não é coisa de comunista
Outro mantra entoado pelos
oponentes da regulação da mídia é que esta seria uma tentativa de acabar com a
liberdade de imprensa e transformar o Brasil num país comunista. Nada mais
desinformado.
O Estados Unidos, por
exemplo, país que está longe de ter aspirações comunistas, já estabeleceu, há
algumas décadas, que donos de empresas que publicam jornais e revistas não
podem controlar também canais de rádio e TV. Os americanos entendem que tamanha
concentração de poder em termos de difusão de informação é prejudicial para a
democracia liberal e a livre concorrência de mercado, que tanto defendem.
Assim, lá os donos do The
New York Times não podem ser os mesmos donos de uma emissora de TV em Nova
York, porque a regulação americana coloca limites à propriedade cruzada dos
meios de comunicação e proíbe a formação de oligopólios. Da mesma forma, uma
empresa não pode ultrapassar um percentual máximo de audiência na mesma localidade,
porque seu impacto seria demasiado grande em termos de poder político. Estas
são apenas duas das regras definidas pelo órgão regulador responsável pelo
setor, entre tantas outras que os Estados Unidos, berço do liberalismo, decidiu
adotar em relação à mídia.
Já por aqui, apesar de
muitos atribuírem o êxito das Organizações Globo exclusivamente à sua
competência em se posicionar no mercado, é preciso lembrar que parte do poder
alcançado pelo maior grupo de rádio e televisão do Brasil também é resultado de
uma ação histórica, ao longo das décadas, do que se pode chamar de abuso de
poder de mercado. Abuso que se revela quando uma única emissora possui cerca de
40% da audiência da TV aberta e concentra mais de 70% do mercado publicitário –
além de controlar canais de TV por assinatura, jornais, revistas, editoras,
gravadoras e produtoras –, desenhando um cenário de evidente monopólio.
A
necessária regulação de conteúdo
Um aspecto interessante da
recente declaração da presidenta Dilma sobre a necessidade de regulação dos
meios de comunicação de massa foi sua incisiva exceção manifestada à regulação
de conteúdo. A posição da presidenta não é novidade; Dilma já disse inúmeras
vezes que prefere o barulho das democracias ao silêncio das ditaduras. Porém, ao
se permitir debater a regulação econômica da mídia e voltar a negar a regulação
de conteúdo, Dilma contribui para a confusão que os grupos de comunicação tanto
gostam de provocar sobre o tema.
É natural que a Dilma tente
se esquivar das armadilhas da imprensa, no sentido de desmontar as versões de
que se trata de um plano maquiavélico para controlar o que os meios podem ou
não dizer. Sua declaração é uma vacina contra a velha estratégia da mídia de
confundir a garantia da liberdade de expressão com a ausência absoluta de
regulação – ou, ainda, de tratar como uma coisa só censura e regulação de
conteúdo. Porém, tanto a estratégia de Dilma em retirar o assunto “conteúdo” da
pauta quanto o esforço dos meios em classificar rasteiramente regulação de
conteúdo como censura só confundem e desinformam a sociedade.
A Unesco (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que está muito longe de
ser um organismo autoritário, entende que há muitos motivos para que a
regulação de conteúdo exista nos meios de comunicação de massa: promover a
diversidade cultural; garantir proteção dos cidadãos contra material que incite
ao ódio, à discriminação e ao crime, e contra a propaganda enganosa; proteger
crianças e adolescentes de conteúdos nocivos ao seu desenvolvimento; proteger a
cultura nacional, entre outros.
O mesmo faz a Constituição
brasileira. Ao definir, em seu artigo 221, que a produção regional e
independente deve ser estimulada, com percentuais mínimos de veiculação na
grade das emissoras, nossa lei maior está pedindo que se regule conteúdo, para
que a programação que chega ao conjunto da sociedade pelo rádio e a TV não
parta apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Ao estabelecer que não mais
de 25% da grade de programação de uma emissora sejam ocupados com propagandas e
anúncios, o Código Brasileiro de Telecomunicações também está prevendo a
regulação de conteúdo.
A classificação indicativa
dos programas, que informa a faixa etária apropriada para determinado tipo de
conteúdo e em que horário ele deve ser exibido, visando a proteção da infância,
também é uma importante forma de regulação de conteúdo. Apesar a Abert,
associação que representa os interesses das emissoras de rádio e TV, ter pedido
no STF o fim da classificação indicativa, alegando desrespeito à liberdade de
expressão, o próprio relator especial da ONU para Liberdade de Expressão, Frank
La Rue, já emitiu parecer afirmando que estes são direitos complementares e não
podem ser tratados como antagônicos. Ou seja, a proteção da infância não fere a
liberdade da expressão e, neste caso, o conteúdo também precisa ser regulado.
O mesmo vale para a
publicidade dirigida a meninos e meninas. Em países como a Suécia, de forte
tradição democrática, a publicidade voltada para o público infantil já foi
abolida há muito tempo por meio de mecanismos de regulação de conteúdo. Aqui,
porém, novamente o argumento distorcido da proteção absoluta à liberdade de
expressão volta a ser usado contra a recente resolução do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que definiu que é abusiva a
publicidade voltada para crianças.
Portanto, dizer que não
existe regulação de conteúdo no Brasil ou que ela não deva existir é um ato
leviano, de má-fé – no mínimo, uma conduta muito mal informada.
Democratizar
a democracia
A construção de um ambiente
de comunicação mais justo e democrático é uma dívida antiga do país consigo
mesmo. A própria democracia fica comprometida sem uma comunicação por meio da
qual todos e todas possam falar e ser ouvidos, em que a diversidade e a
pluralidade de ideias existentes no país circulem de forma equilibrada nos
meios de comunicação de massa.
Se de fato a presidenta
Dilma incluir em seu programa de governo e, sendo reeleita, colocar em prática
uma política de regulação da radiodifusão, daremos um passo importante no
avanço da democracia brasileira. Mas não é a primeira vez que esta possibilidade
é ventilada. Em outros momentos, o PT chegou a pautar o debate da regulação da
mídia em seus programas de governo, e já se vão 12 anos sem que a questão seja
concretamente enfrentada.
É por isso que, cansada de
esperar, a sociedade civil tomou o problema nas mãos e está colhendo
assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular, que tem como objetivo
estabelecer um novo marco regulatório para as comunicações eletrônicas no país.
O que se espera é que o debate sobre o tema possa ser, desta forma,
desinterditado junto à população em geral, para acabar com a confusão
proposital de que qualquer regulação da mídia é sinônimo de censura. Pelo
contrário, a regulação é necessária para democratizar a alta concentração de
poder instalada nos meios de comunicação de massa, garantindo diversidade,
pluralidade e um efetivo exercício da liberdade de expressão do conjunto da
população brasileira.
Espera-se agora que a
presidenta Dilma compreenda o tema em sua complexidade e abrangência, para que
não continue jogando água no moinho daqueles que trabalham com a desinformação
e distorção dos fatos para garantir que tudo continue como está.
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