por Silvio Caccia Bava
A participação cidadã na
gestão pública nunca foi oferecida pelos governos. Ela sempre foi uma conquista
da cidadania organizada. Essa ampliação da democracia, assim como a própria
democracia, depende da vitalidade e da iniciativa dos cidadãos. Ao se criarem
leis e mecanismos que institucionalizam canais de participação na gestão
pública, a cidadania organizada cria um novo direito, o direito à participação
cidadã na governança pública. Mas, assim como os direitos sociais, o direito à
participação não se efetiva por seu reconhecimento formal. Na verdade, esse
reconhecimento abre um novo campo de disputas, legitima e torna visíveis novos
atores que se empenham na conquista desses direitos.
Ao mesmo tempo que essa
inovação democrática – a participação cidadã na gestão pública – ganha espaços,
assistimos, paradoxalmente, à democracia liberal ser capturada pelo poder
econômico, distanciar-se dos interesses dos cidadãos e sujeitar-se aos
interesses do mercado, isto é, das grandes corporações transnacionais,
especialmente as financeiras. O financiamento das campanhas eleitorais por
empresas é um dos meios de submeter o poder político ao econômico.
Justamente por esse conflito
de interesses entre as demandas da cidadania e a dominância da lógica do lucro
é que, em muitas partes do mundo, a cidadania sublevou-se. Um exemplo são as
manifestações de junho de 2013 no Brasil, que levaram milhões às ruas protestando
contra a mercantilização dos serviços públicos. O mapa dos conflitos sociais na
América Latina, feito recentemente pela Alop,1 mostra a resistência da
cidadania organizada contra o modelo de desenvolvimento neoextrativista e a
mercantilização e precarização do que antes era público, especialmente a saúde
e a educação públicas.
O sentido maior dessas
mobilizações é enfrentar a precarização da vida, o empobrecimento das maiorias,
o colapso dos serviços públicos, a perda de valor do trabalho e a redução da
proteção social. Torna-se cada vez mais visível que as causas dessa crise de
múltiplas dimensões é a obscena concentração de riquezas e poder nas mãos de
menos de 1% da população.
A democracia, mais do que
nunca, tornou-se a bandeira da cidadania. Só ela garante a universalização de
direitos, só ela é capaz de enfrentar e limitar a voracidade e o sentido
predatório da lógica do mercado. E é justamente por isso que neste momento
assistimos ao questionamento das instituições democráticas, partidos e
governos. Não é o questionamento da democracia, como querem alguns, mas o
questionamento dessa democracia, desses partidos políticos, desses governos que
aí estão.
O clamor das ruas é para
reinventar a democracia, criar novas institucionalidades, garantir o acesso
público à informação e uma ampla e efetiva participação cidadã na gestão das
políticas públicas, recuperar o sentido de representação que têm os mandatos
parlamentares, submeter a Justiça ao controle democrático.
A participação cidadã não
tem uma progressão linear enquanto uma conquista que se afirma como direito.
Seu significado está em constante disputa. E sabemos que, para a democracia ser
efetiva, ela depende da atuação de organizações coletivas de defesa de direitos
que, dentro e fora dos espaços institucionais de participação, apresentam para
a sociedade e para as instituições políticas suas demandas.
Esse complexo tema da
reinvenção democrática da política tem um foco: que o centro das estratégias de
desenvolvimento seja conquistar o bem-estar das maiorias e melhores condições
de vida para todos. Para isso, as coisas não podem ficar como estão; precisamos
promover a reforma política, não apenas uma reforma eleitoral.
A boa notícia é que a
sociedade civil se mobiliza e luta por essa reforma política. Desde novembro de
2013, 450 organizações e 1,8 mil comitês populares participaram da organização
do Plebiscito Popular pela Constituinte para a Reforma Política, que ocorreu na
primeira semana de setembro, utilizando mais de 40 mil urnas físicas por todo o
país e a internet.
Com ampla mobilização de
ativistas, a campanha pela “Constituinte da Reforma Política” ocupou o espaço
público – escolas, sindicatos, associações, igrejas etc. – e as redes sociais.
Contou com a colaboração de artistas, intelectuais, lideranças sindicais e
populares. A campanha também cobrou dos candidatos à Presidência e aos
parlamentos que se posicionassem com relação à proposta. Ao final, foram
totalizados 7.754.436 votos, com 97,05% pelo “sim” à Constituinte e 2,57% pelo
“não”.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le
Monde Diplomatique Brasil
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