ENTREVISTA
COM RAQUEL GONÇALVES SALGADO
A pesquisadora Raquel
Gonçalves Salgado reflete sobre conflitos gerados pela visão docente idealizada
de infância, forjada pela própria experiência, em oposição à atual vivência
infantil, marcada pela mídia e o ideário de consumo
Por Marta Avancini
O que é ser criança na
contemporaneidade? Para responder esta pergunta, a psicóloga Raquel
Gonçalves Salgado, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT),
campus de Rondonópolis, tem realizado uma série de pesquisas acerca dos
sentidos da infância no mundo atual, enfocando, especialmente, os confrontos de
visão e percepção entre as próprias crianças e os adultos acerca dessa questão.
Seus estudos recentes,
desenvolvidos com professoras e crianças de educação infantil no âmbito do
grupo de pesquisa Infância, Juventude e Cultura Contemporânea, ligado ao
programa de pós-graduação em Educação da UFMT, apontam para um descompasso: de
um lado, uma visão idealizada de infância, como lugar da inocência, é propagada
pelas docentes; de outro, os alunos aportam uma experiência fortemente marcada
pela mídia e pelo ideário do consumo.
Na entrevista a seguir,
concedida à revista Educação, Raquel aponta que os efeitos desse descompasso se
manifestam, por exemplo, em dificuldades de relacionamento e de interação entre
crianças que foram o objeto de investigação de Raquel e, também, de
adolescentes com os adultos no ambiente escolar. Isto porque, em função da idealização,
os alunos deixam de ser olhados e percebidos a partir do que eles são, pensam e
sentem.
Ao mesmo tempo, delineia-se
um desafio central aos educadores, aportando à educação o desafio de promover,
entre as novas gerações, a crítica dos valores associados ao consumismo – tendo
em vista o papel da educação escolar na formação de cidadãos críticos e
autônomos.
O
que significa dizer que a infância é construída social e historicamente e quais
as implicações dessa visão?
Esta perspectiva propõe que
se olhe para a infância para além de uma fase da vida, o que significa
compreendê-la em suas especificidades, nos modos como ela se apresenta hoje e
não como deveria ser, como promessa para um futuro, que apenas tem sentido na
vida adulta. Assim sendo, não há um modo absoluto de conceber a infância, uma
vez que as ideias em torno desse tempo de vida ganham sentido na sociedade e na
época em que são forjadas.
Qual
é o seu enfoque ao estudar as percepções que crianças e adultos têm da
infância?
Minha preocupação principal
é compreender a infância no mundo atual e as relações entre crianças e adultos
na cultura contemporânea, que lugares esses sujeitos têm assumido, que
experiências têm construído. Ou seja, minha questão principal é analisar que
experiências as crianças de hoje têm constituído e de que maneira tais
experiências têm se confrontado com algumas expectativas que existem em relação
a elas. Para tanto, trabalho com os confrontos de visões da infância das
professoras de educação infantil e das próprias crianças, que são alunas dessas
professoras. Também utilizo uma metodologia de intervenção, ou seja, no
contexto da pesquisa, são instauradas situações em que crianças e adultos –
incluindo a pesquisadora – refletem e problematizam questões pertinentes às suas
experiências contemporâneas, principalmente no que diz respeito ao confronto de
valores, ideias e visões.
O
que é ser criança hoje na percepção das crianças e na dos adultos, segundo suas
pesquisas?
A criança de hoje está
imersa em um mundo muito diferente daquele de décadas atrás. Ela participa de
diversas esferas da vida social de forma mais engajada. Ela traz uma
experiência mais atravessada pela tecnologia, pela mídia. Vive uma infância
mais voltada para o ambiente doméstico, para a escola e muito permeada pelo
consumo – isso apareceu de forma bem significativa nas falas das crianças.
Nesse sentido, possui conhecimentos e experiências que não estão mais
restritos ao âmbito da família e da escola, mas se processam nas interações com
a mídia e com os mais diversos meios de informação. Em contrapartida, nós,
adultos, somos de uma geração específica, que ainda conserva uma visão de
infância muito permeada pela ideia da inocência em termos de conhecimento para
participar da vida social. Mas, de repente, nos deparamos com uma criança muito
diferente das imagens que ainda compartilhamos. Percebo, em minhas pesquisas,
que há mais diferenças do que pontos em comum entre a visão de infância de
crianças e a de adultos. Talvez o ponto de convergência entre ambas as visões
esteja nas experiências lúdicas, no brincar.
O
que é diferente em termos da visão de infância entre as crianças e as
professoras?
Na pesquisa mais recente,
nós analisamos também as narrativas das professoras sobre suas experiências de
infância. Essas narrativas evidenciaram que as visões que elas têm sobre as
crianças são muito permeadas pela própria infância. Isso é muito interessante
porque as crianças se depararam com histórias de infância muito distintas
daquilo que elas estão vivendo hoje em dia. Elas também se surpreenderam com
algumas experiências que as professoras contam: brincar ao ar livre, brincar de
pés descalços na rua, até porque, no caso das professoras com quem eu trabalhei
nessa pesquisa, elas trazem relatos de uma infância vivida num contexto rural.
Uma vida sem tecnologia, uma infância compartilhada com muitas crianças, elas
vêm de famílias com muitas crianças, muitos irmãos, então, essa brincadeira
compartilhada com outras crianças na rua, até com certa liberdade maior, aparece
como um ponto de destaque nas experiências que elas relatam. Sobretudo na
educação, isso tem gerado fortes confrontos de valores, o que faz com que as
professoras não consigam se relacionar com seus alunos, já que a criança
contemporânea traz muitos desafios, posto que seus valores, informações e
experiências se confrontam diretamente com a imagem da criança inocente, tão
consolidada em nosso ideário de infância.
A
senhora diria que a mídia ocupa uma posição central na experiência de infância
na contemporaneidade?
Com certeza, a mídia e as
interações que as crianças têm com ela, sobretudo com a mídia eletrônica, e o
consumo, como uma prática social muito forte entre elas, têm trazido um
diferencial bem visível nas experiências que têm apresentado hoje. As
professoras também identificam isso. Elas afirmam que as crianças trazem
informações e conhecimentos que muitas vezes não são aprendidos na escola, nem
na família, mas sim nessas outras instâncias sociais.
E isso faz com que as
professoras se sintam um pouco perdidas na relação com as crianças. Como
ensinar? O que ensinar? Como me relacionar com elas? Elas aprenderam e têm como
valor outra imagem de criança. Essa problematização foi um elemento muito forte
na minha última pesquisa. As professoras chegaram a afirmar que a inocência,
como uma característica emblemática da infância construída na cultura
ocidental, tem se perdido hoje.
As
mudanças do que é ser criança na atualidade estariam levando à indistinção
entre a infância e a vida adulta, como ocorria na Idade Média, por exemplo?
Não vejo como
indistinção.Crianças e adultos são diferentes, ainda que estejam compartilhando
informações, produtos culturais e situações sociais comuns. O que os difere são
os modos de pensar e significar esses elementos da cultura. Não é possível
afirmarmos um retorno a épocas passadas, uma vez que já está consolidada na
nossa cultura a ideia de infância como um tempo de vida distinto da idade
adulta. Na Idade Média, a infância não tinha a configuração que passou a ter na
Modernidade. Desse modo, não podemos dizer que estamos retornando àquele tempo,
nós já temos infância como valor importantíssimo na nossa sociedade. A infância
já é algo que não pode ser desfeito. É um valor, é uma ideia, é um pilar na
nossa cultura. Ela existe e os adultos participam como aqueles que educam as
crianças, aqueles que protegem a criança, do ponto de vista jurídico inclusive,
e aqueles que vão permitir que as crianças se desenvolvam. Não dá para pensar a
infância fora da relação com a vida adulta. Agora, o que é interessante pensar
é como essas relações entre crianças e adultos têm ganhado outras configurações
porque nós adultos temos contribuído para que as crianças sejam dessa forma. Eu
não vejo como indistinção, mas como uma outra forma de se relacionar com a
criança, que tem provocado novos valores no modo como cada sujeito se vê nesse
processo.
Mas
o fato de a criança ser uma pessoa em desenvolvimento, que ainda não possui
capacidade de absorver de modo crítico o conteúdo veiculado pela mídia, não é
prejudicial, inclusive no sentido de descaracterizar a infância?
Não vejo como ausência de
capacidade da criança. A forma como o adulto interpreta as informações, como se
apropria do conhecimento é diferente da forma como a criança o assimila. Vejo
como um modo diferente de pensar, significar. Agora, uma questão importante:
não podemos deixar a criança à mercê desses ensinamentos da mídia. A própria
questão do consumo é presente para os adultos. De repente, nos vemos diante de
uma cultura em que a única possibilidade de convivência social está na esfera
do consumo. Então, a gente também fala muito que a criança está vulnerável, mas
nós também estamos nesse “barco”. Um desafio forte para a educação escolar hoje
é a necessidade de problematizar isso; uma educação que se proponha a fazer uma
crítica a essas informações às quais as crianças têm acesso, a esses produtos
culturais. Trazer isso para o espaço da escola no sentido de problematizar e de
permitir outros modos de olhar para essas questões que são naturalizadas em
nosso cotidiano. Aposto muito na educação como um dos espaços sociais capazes
de trazer para as novas gerações outros códigos de sociabilidade que não sejam
apenas estes que estão marcados pelo consumo desenfreado e pela banalização das
relações humanas.
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