Por Pedro Estevam Serrano
Operação da PM carioca no
complexo do Alemão no Rio de janeiro matou um menino de 10 anos de idade. O
índice de letalidade da polícia militar no Estado de São Paulo tem batido
recordes assustadores, para não dizer mórbidos. Segundo dados da própria Ouvidoria
da polícia paulista, 801 pessoas foram mortas por policiais militares no ano
passado, o que representa um crescimento de 77% em comparação com 2013.
De acordo com levantamento da ONG
Fórum Brasileiro de Segurança, nos últimos cinco anos, as polícias brasileiras
mataram mais do que as polícias norte-americanas nos últimos 30 anos. Isso
equivale a uma média de seis pessoas por dia, número superior ao de mortes
diárias registradas em países em guerra.
Esses números dramáticos são
sintomas do fato de coexistirem no Brasil dois Estados paralelos: um Estado
jurídico formal, que é o estado democrático de Direito, vigente nos grandes
centros onde vivem as pessoas incluídas no mercado de consumo, e o estado de
exceção, predominante nos morros e periferias dominadas pela pobreza.
Cotidianamente, e não em caráter
ocasional, os brasileiros que vivem nestes espaços geográficos, os mesmos onde
a força letal das polícias é mais evidente, têm suspensos seus direitos
fundamentais de ir e vir, de integridade física e moral, e o mais elementar de
todos – o direito à vida. Logo, não é exagero afirmar que vivem sob permanente
estado de exceção.
Vale lembrar que estado de exceção
não é um conceito vago em termos de teoria do Estado. Em sua concepção atual, é
a tradução no âmbito científico, político e teórico do estado do conceito
jurídico-constitucional da Constituição alemã de Weimar, de 1919, que abria a
possibilidade de suspender os direitos fundamentais das pessoas como medida
excepcional, em razão de grandes calamidades ou para restabelecer a segurança e
a ordem pública, inclusive com ajuda das forças armadas.
Essa foi a brecha legal apontada
por Hitler para, após o incêndio no Reichstag, suspender direitos e instaurar o
estado de exceção a fim de conter a “ameaça” ao Estado alemão ocasionada pelo
suposto e produto da mitomania oficial inimigo comunista.
Essa dinâmica vai se observar em
todas as ditaduras do século XX.Todas se utilizam do discurso legitimador do
combate ao inimigo da sociedade para legitimar a suspensão dos direitos das
pessoas e instaurar a força imperial do Estado como expediente supostamente
provisório de combate ao inimigo público, para futuramente retornar ao Estado
democrático de Direito. A ditadura brasileira é exemplo desse expediente.
No século XXI, conforme observa o
filósofo italiano Giorgio Aganbem, esse mecanismo muda, e as medidas de exceção
passam a ser adotadas no interior dos regimes democráticos, sob diferentes
conformações. Em vez de Governos autoritários, medidas autoritárias no interior
da democracia.
O Patriotic Act americano é um
exemplo acabado desse novo modelo. Com base na justificativa de que era preciso
combater o terrorismo e colocar a segurança acima de tudo, após o atentado às
torres gêmeas, o governo de George W. Bush criou um estado de emergência,
subtraiu a Constituição e restringiu direitos de um determinado grupo
étnico-religioso.
Em 2005, o governo francês
decretou estado de urgência quando os subúrbios parisienses, habitados
predominantemente por descendentes de árabes e de africanos, se levantaram
contra o assassinato de dois jovens pela polícia. Nesse momento de suspensão de
direitos, a polícia francesa teve salvaguarda legal para revistar, entrar nas
casas sem mandato, decretar toque de recolher, dentre outros abusos cometidos
quase sempre contra grupos também social e etnicamente selecionados: negros,
muçulmanos, pobres.
O que Aganbem questiona é até que
ponto o estado de emergência não é mera criação voluntária e artificial,
tornando-se um paradigma de governo da política contemporânea. Para o pensador
italiano, o uso provisório desse mecanismo é até teoricamente compatível com as
constituições democráticas, mas seu exercício sistemático acaba por levar à
liquidação da democracia.
Essa teoria é comprovada quando
se observa o quão radical é esse processo de suspensão de direitos na América
Latina e nos países de capitalismo periférico, onde a quantidade de ações concretas
de exceção praticadas pelo Estado é tão rotineira e banalizada, que se
configura a existência de dois Estados paralelos, que caminham
concomitantemente.
Nas periferias das grandes
cidades do Brasil, a repressão policial é ostensiva e agride violentamente os
direitos das pessoas também sob a falsa ideia de garantir a segurança e
combater o criminoso, invariavelmente, o pobre suspeito de ter cometido delito.
Esse é o inimigo que a PM combate diuturnamente, apoiada por uma boa parte da
sociedade, afinal o discurso da segurança é legitimador dos mecanismos de
exceção.
Os policiais militares são
agentes da linha de frente deste estado de exceção que governa as periferias e
os morros do Brasil. É evidente que a solução para um problema complexo e dessa
magnitude envolve medidas de natureza econômica, social e educativa, mas para
dar o primeiro passo é imprescindível extinguir a lógica militarista das nossas
polícias.
Não é possível pensar em
simplesmente reformar a polícia militar, porque ela é um corpo repressor criado
para exercer exceção, e não Direito. E sua existência só se justifica se houver
um inimigo a combater. É preciso perguntar, afinal, para que guerra esses
soldados são treinados. Um menino morto e mais de 800 baixas em um único ano é
uma resposta elucidativa.
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