Por Saul Leblon
A boa notícia na praça é que
o campo progressista resolveu correr riscos.
A segunda boa notícia: isso
significa deixar o divã da política para fazer política.
Dito em outros termos:
reagir à condição de objeto da crise à qual o conservadorismo quer
circunscreve-lo – a exemplo do que já faz com a Petrobrás – e se impor como sujeito nessa que avulta como
uma das mais virulentas transições de ciclo de desenvolvimento já enfrentadas
pelo país (32; 54; 64; 1985; 2002....) .
Em vez de ‘sugerir’ agendas
ao governo, como um cronista da crise, partidos de esquerda, movimentos
sociais, centrais sindicais, personalidades democráticas e socialistas
convergem agora para um mesmo consenso aglutinador.
O Brasil necessita
urgentemente viabilizar um novo braço coletivo.
Que tenha a força e a
extensão de uma frente ampla democrática e progressista.
Que seja maior do que a soma
das partes, capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da
direita, abrindo espaço assim para o governo recuperar seu projeto e a capacidade
de iniciativa.
Em vez de referido, trata-se
de introduzir uma outra referência à urgência dos dias que correm.
Listar plataformas e
bandeiras é quase um truísmo, tão vertiginosa é a sua evidência na encruzilhada
brasileira, igualmente ostensiva em demonstrar a insuficiência da organização
política para viabiliza-las.
Barrar o golpismo, por
exemplo, exige libertar a democracia e a urna do poder do dinheiro grosso
–impondo tetos aos gastos eleitorais ou vetando grandes doadores de estimação
do Congresso Nacional; afastar o arrocho cíclico e a ameaça da restauração
neoliberal implica coibir a mobilidade dos capitais, taxar o lucro financeiro,
os bancos, dividendos e grandes fortunas, ademais de tributar a herança e assim
abrir espaço fiscal à infraestrutura, à saúde pública e à educação de
qualidade.
Nada disso acontecerá sem
romper um oligopólio de comunicação que envenena o discernimento social, sabota
o pacto entre o desenvolvimento e a democracia social, interdita a avenida do
salário digno e da cidadania plena.
Não existe a expressão
política organizada correspondente ao enfrentamento contido nessas demandas.
A encruzilhada do
desenvolvimento brasileiro decorre em boa parte do descompasso entre requisitos
econômicos e regulatórios que não encontram sua tradução no escopo da
correlação de forças existente no país.
A urna é um pedaço do
caminho cada vez mais insuficiente diante do poder de veto de interesses
plutocráticos na era da livre mobilidade dos capitais.
Um governo progressista sufragado
nesse ambiente dificilmente escapará de ser frágil, instável, contraditório,
marmorizado por uma base parlamentar movediça e engessado por gargalos
estruturais implacáveis.
A exceção quase sempre
reflete a interferência de um fator externo no padrão dominante. Seja o do
líder popular -- capaz de saltar bloqueios com a força intransferível do seu
carisma; ou a bonança de um ciclo de
preços mais favorável nos termos das trocas internacionais; ou ainda a crise
sistêmica que dá contornos fratricidas a disputa no campo conservador –ou então
a soma de tudo isso junto.
A persistência de alguns
desses ingredientes na década de governos iniciado em 2002 deu ao campo
progressista –em que pese a crise do
chamado mensalão, em 2005-- a falsa percepção de um padrão duradouro de
avanço incremental e linear que veio para ficar.
Quando o excedente gerado
pelo super-ciclo das commodities minguou, a rápida mutação da pax social em
guerra virulenta da elite contra o governo e os ‘emergentes’ deixou alguns perplexos.
Não deveria.
A turbulência golpista é uma
velha senhora na história da luta pelo desenvolvimento latino-americano.
Para não incomodar os
séculos fiquemos no seu protagonismo mais recente: houve o Chile de Allende
eviscerado por Pinochet; houve uma Granada socialista, de Maurice Bishop,
defumada pelas tropas dos EUA; sucederam-se ditaduras sanguinárias no Paraguai, Brasil, Argentina, Uruguai,
Bolívia etc etc etc
O PT e uma parte de seus
dirigentes –mas também círculos de seu entorno intelectual, incluindo-se os da
mídia progressista— deixaram-se hipnotizar de algum modo pela miragem do boom
exportador como se a democracia fosse o consenso e não a tensão no continente.
Desse equívoco brotaria um
outro: o economicismo que rebaixaria a importância da luta política na
construção de uma verdadeira democracia social.
Carta Maior tem insistido
nesse ponto porque é uma autocritica indispensável ao passo seguinte do país:
durante um período longo demais, muitos dentro do governo e do PT acharam que
essa era uma ‘não-questão’.
Que tudo se resolveria no
piloto automático dos avanços incrementais no consumo, que se propagariam
mecanicamente das gôndolas dos supermercados para a correlação de forças da
sociedade, em uma espiral ascendente e virtuosa.
O absenteísmo em relação às
bases, às ruas e à luta ideológica, a inexistência de canais de comunicação
próprios com a sociedade, tudo parecia tangencial ao poder persuasivo do
tíquete médio de um jogo no qual todos ganhavam.
A eclosão da desordem
neoliberal sacudiu esse sono profundo expondo com virulência o reduzido grau de
tolerância conservadora à construção de uma verdadeira democracia social no
Brasil.
Fez mais que isso.
Escancarou a frágil
organização progressista em um cenário em que o crescimento da riqueza já não
acomoda os conflitos do desenvolvimento, deslocando o jogo para o enfrentamento
bruto entre arrocho ou tributação da plutocracia.
Que esse novo tempo tenha
liberado o ódio latente ao PT e aos segmentos populares, é compreensível.
Que tenha empalmado
inclusive setores incorporados ao mercado de massa nos últimos doze anos,
escancara os limites do economicismo que orientou a precária construção da
governabilidade progressista desde 2003.
Como se viu na Paulista dia
15 de março –e se reafirma no jogral midiático diariamente, a contradição
atingiu dimensões suficientes para resgatar uma discussão inscrita nas origens
do PT, mas abandonada à medida em que a governabilidade parlamentar monopolizou
as energias do partido no poder: como ir além dos limites impostos à construção
da democracia social no capitalismo?
Uma primeira pista é que não
se pode atribuir à economia aquilo que compete à correlação de forças decidir.
A repactuação de um novo
ciclo de investimento com distribuição da riqueza é indissociável de um avanço
da democracia participativa .
O resto é arrocho.
Entre os requisitos
incontornáveis para que não seja arrocho inclui-se refazer o caminho de volta
às ruas.
Não em eventos esporádicos
de uma estrutura pesada e obsoleta que desaprendeu a andar no asfalto e na lama
e levará tempo no reaprendizado.
Mas através de um novo
protagonista coletivo.
Que impulsione as partes do
todo de fora para dentro; que tenha estatura, capilaridade e força superior a
todas elas, sendo capaz, assim, de fazer o que nenhum de seus componentes
unilateralmente conseguiria: alterar a correlação de forças predominantemente
desfavorável existente hoje no Brasil.
A frente ampla democrática e
progressista emerge como esse atalho de autocrítica e engajamento, dotado de
contrapesos à burocratização e à esclerose inerente à ilusão de que é possível
ter democracia e desenvolvimento no século XXI sem radicalização de direitos
sociais negado pelos mercados.
Mais grave que isso no caso
brasileiro: que é viável avançar nesse percurso à margem da organização e do
discernimento crítico de seus principais interessados.
Quem?
A nova classe trabalhadora
surgida na última década foi significativamente batizada com um eufemismo
histórico: ‘nova classe média’.
Devolver-lhe a identidade
política implica dotá-la de organização e discernimento correspondente ao peso
que tem na economia e na sociedade.
Como trilhar uma rota
distinta da desenhada por Joaquim Levy se o sujeito do processo permanece
alheio às raízes do conflito que decidirá o seu destino?
Para onde pender essa força
predominantemente jovem, filha de uma desindustrialização precoce, refém da
precariedade laboral do neoliberalismo, inclinar-se-á em boa medida o Brasil e
sua democracia.
A despolitização do projeto
de desenvolvimento nos últimos anos levou esse contingente a enxergar sua
inserção no mundo como uma relação pessoal com a gôndola e com o limite do
cartão de crédito.
Esse é, na verdade, o grande
ajuste que desafia o Brasil progressista.
Antes de atribuir à
Presidenta Dilma a responsabilidade exclusiva pela travessia em curso é preciso
enfrentar essa pendência.
Não com retórica.
Com um balanço objetivo da
capacidade de mobilização progressista hoje.
O ciclo de governos petistas
colecionou erros e acertos na economia.
Mas espetou essa dissonância
incontornável no metabolismo da nação.
Ao trazer 60 milhões de
brasileiros ao mercado e à cidadania esburacou de maneira formidável a estrada
na qual o conservadorismo costumava engatar a ré e acelerar o retrocesso sem
nem consultar o espelho retrovisor.
Esmagando quem estivesse no
caminho.
Não é mais possível faze-lo
assim.
Exceto se a regressão vier
embarcada em um termidor regressivo determinado a destruir o potencial
econômico e político acumulado nos últimos anos.
Há fortes razões para supor
que essa hipótese choca no ódio conservador presente nas ruas, na mídia e nas
vozes oposicionistas nos dias que correm.
Semanas após a vitória
progressista nas urnas, quando o governo já parecia hipnotizado pelo
serpentário golpista que havia subestimado na campanha, Carta Maior indagava:
‘O que se pergunta
ansiosamente é se Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos
já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT; se a
CUT já conversou com Stédile; se todos já se deram conta de que passa da hora
de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das
providências que a urgência revela quando se pensa grande. Se ainda não se
aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil
emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o
tique taque se esgotar’.
A boa nova na praça é que a
conversa começou.
Não apenas começou.
Ganhou a urgência que só a
história consegue impor aos seus protagonistas diante das provas cruciais de
uma mudança de época.
A ver.
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