sábado, 4 de abril de 2015

Frente ampla e ajuste político



Por Saul Leblon


 José Cruz/Agência Brasil
A boa notícia na praça é que o campo progressista resolveu correr riscos.

A segunda boa notícia: isso significa deixar o divã da política para fazer política.

Dito em outros termos: reagir à condição de objeto da crise à qual o conservadorismo quer circunscreve-lo – a exemplo do que já faz com a Petrobrás –  e se impor como sujeito nessa que avulta como uma das mais virulentas transições de ciclo de desenvolvimento já enfrentadas pelo país (32; 54; 64; 1985; 2002....) .

Em vez de ‘sugerir’ agendas ao governo, como um cronista da crise, partidos de esquerda, movimentos sociais, centrais sindicais, personalidades democráticas e socialistas convergem agora para um mesmo consenso aglutinador. 

O Brasil necessita urgentemente viabilizar um novo braço coletivo.

Que tenha a força e a extensão de uma frente ampla democrática e progressista.

Que seja maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da direita, abrindo espaço assim para o governo recuperar seu projeto e a capacidade de iniciativa.

Em vez de referido, trata-se de introduzir uma outra referência à urgência dos dias que correm.

Listar plataformas e bandeiras é quase um truísmo, tão vertiginosa é a sua evidência na encruzilhada brasileira, igualmente ostensiva em demonstrar a insuficiência da organização política para viabiliza-las.

Barrar o golpismo, por exemplo, exige libertar a democracia e a urna do poder do dinheiro grosso –impondo tetos aos gastos eleitorais ou vetando grandes doadores de estimação do Congresso Nacional; afastar o arrocho cíclico e a ameaça da restauração neoliberal implica coibir a mobilidade dos capitais, taxar o lucro financeiro, os bancos, dividendos e grandes fortunas, ademais de tributar a herança e assim abrir espaço fiscal à infraestrutura, à saúde pública e à educação de qualidade.

Nada disso acontecerá sem romper um oligopólio de comunicação que envenena o discernimento social, sabota o pacto entre o desenvolvimento e a democracia social, interdita a avenida do salário digno e da cidadania plena.

Não existe a expressão política organizada correspondente ao enfrentamento contido nessas demandas.

A encruzilhada do desenvolvimento brasileiro decorre em boa parte do descompasso entre requisitos econômicos e regulatórios que não encontram sua tradução no escopo da correlação de forças existente no país.

A urna é um pedaço do caminho cada vez mais insuficiente diante do poder de veto de interesses plutocráticos na era da livre mobilidade dos capitais.

Um governo progressista sufragado nesse ambiente dificilmente escapará de ser frágil, instável, contraditório, marmorizado por uma base parlamentar movediça e engessado por gargalos estruturais implacáveis.

A exceção quase sempre reflete a interferência de um fator externo no padrão dominante. Seja o do líder popular -- capaz de saltar bloqueios com a força intransferível do seu carisma; ou a bonança  de um ciclo de preços mais favorável nos termos das trocas internacionais; ou ainda a crise sistêmica que dá contornos fratricidas a disputa no campo conservador –ou então a soma de tudo isso junto.

A persistência de alguns desses ingredientes na década de governos iniciado em 2002 deu ao campo progressista   –em que pese a crise do chamado mensalão, em 2005--   a  falsa percepção de um padrão duradouro de avanço incremental e linear que veio para ficar.

Quando o excedente gerado pelo super-ciclo das commodities minguou, a rápida mutação da pax social em guerra virulenta da elite contra o governo e os ‘emergentes’  deixou alguns perplexos.

Não deveria.

A turbulência golpista é uma velha senhora na história da luta pelo desenvolvimento latino-americano.

Para não incomodar os séculos fiquemos no seu protagonismo mais recente: houve o Chile de Allende eviscerado por Pinochet; houve uma Granada socialista, de Maurice Bishop, defumada pelas tropas dos EUA; sucederam-se ditaduras sanguinárias  no Paraguai, Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia etc etc etc

O PT e uma parte de seus dirigentes –mas também círculos de seu entorno intelectual, incluindo-se os da mídia progressista— deixaram-se hipnotizar de algum modo pela miragem do boom exportador como se a democracia fosse o consenso e não a tensão no continente.

Desse equívoco brotaria um outro: o economicismo que rebaixaria a importância da luta política na construção de uma verdadeira democracia social.

Carta Maior tem insistido nesse ponto porque é uma autocritica indispensável ao passo seguinte do país: durante um período longo demais, muitos dentro do governo e do PT acharam que essa era uma ‘não-questão’.

Que tudo se resolveria no piloto automático dos avanços incrementais no consumo, que se propagariam mecanicamente das gôndolas dos supermercados para a correlação de forças da sociedade, em uma espiral ascendente e virtuosa.

O absenteísmo em relação às bases, às ruas e à luta ideológica, a inexistência de canais de comunicação próprios com a sociedade, tudo parecia tangencial ao poder persuasivo do tíquete médio de um jogo no qual todos ganhavam.

A eclosão da desordem neoliberal sacudiu esse sono profundo expondo com virulência o reduzido grau de tolerância conservadora à construção de uma verdadeira democracia social no Brasil.

Fez mais que isso.

Escancarou a frágil organização progressista em um cenário em que o crescimento da riqueza já não acomoda os conflitos do desenvolvimento, deslocando o jogo para o enfrentamento bruto entre arrocho ou tributação da plutocracia.

Que esse novo tempo tenha liberado o ódio latente ao PT e aos segmentos populares, é compreensível.

Que tenha empalmado inclusive setores incorporados ao mercado de massa nos últimos doze anos, escancara os limites do economicismo que orientou a precária construção da governabilidade progressista desde 2003.

Como se viu na Paulista dia 15 de março –e se reafirma no jogral midiático diariamente, a contradição atingiu dimensões suficientes para resgatar uma discussão inscrita nas origens do PT, mas abandonada à medida em que a governabilidade parlamentar monopolizou as energias do partido no poder: como ir além dos limites impostos à construção da democracia social no capitalismo?

Uma primeira pista é que não se pode atribuir à economia aquilo que compete à correlação de forças decidir.

A repactuação de um novo ciclo de investimento com distribuição da riqueza é indissociável de um avanço da democracia participativa .

O resto é arrocho.

Entre os requisitos incontornáveis para que não seja arrocho inclui-se refazer o caminho de volta às ruas.

Não em eventos esporádicos de uma estrutura pesada e obsoleta que desaprendeu a andar no asfalto e na lama e levará tempo no reaprendizado.

Mas através de um novo protagonista coletivo.

Que impulsione as partes do todo de fora para dentro; que tenha estatura, capilaridade e força superior a todas elas, sendo capaz, assim, de fazer o que nenhum de seus componentes unilateralmente conseguiria: alterar a correlação de forças predominantemente desfavorável existente hoje no Brasil.

A frente ampla democrática e progressista emerge como esse atalho de autocrítica e engajamento, dotado de contrapesos à burocratização e à esclerose inerente à ilusão de que é possível ter democracia e desenvolvimento no século XXI sem radicalização de direitos sociais negado pelos mercados.

Mais grave que isso no caso brasileiro: que é viável avançar nesse percurso à margem da organização e do discernimento crítico de seus principais interessados.

Quem?

A nova classe trabalhadora surgida na última década foi significativamente batizada com um eufemismo histórico: ‘nova classe média’.

Devolver-lhe a identidade política implica dotá-la de organização e discernimento correspondente ao peso que tem na economia e na sociedade.

Como trilhar uma rota distinta da desenhada por Joaquim Levy se o sujeito do processo permanece alheio às raízes do conflito que decidirá o seu destino?

Para onde pender essa força predominantemente jovem, filha de uma desindustrialização precoce, refém da precariedade laboral do neoliberalismo, inclinar-se-á em boa medida o Brasil e sua democracia.

A despolitização do projeto de desenvolvimento nos últimos anos levou esse contingente a enxergar sua inserção no mundo como uma relação pessoal com a gôndola e com o limite do cartão de crédito.

Esse é, na verdade, o grande ajuste que desafia o Brasil progressista.

Antes de atribuir à Presidenta Dilma a responsabilidade exclusiva pela travessia em curso é preciso enfrentar essa pendência.

Não com retórica.

Com um balanço objetivo da capacidade de mobilização progressista hoje.

O ciclo de governos petistas colecionou erros e acertos na economia.

Mas espetou essa dissonância incontornável no metabolismo da nação.

Ao trazer 60 milhões de brasileiros ao mercado e à cidadania esburacou de maneira formidável a estrada na qual o conservadorismo costumava engatar a ré e acelerar o retrocesso sem nem consultar o espelho retrovisor.

Esmagando quem estivesse no caminho.

Não é mais possível faze-lo assim.

Exceto se a regressão vier embarcada em um termidor regressivo determinado a destruir o potencial econômico e político acumulado nos últimos anos.

Há fortes razões para supor que essa hipótese choca no ódio conservador presente nas ruas, na mídia e nas vozes oposicionistas nos dias que correm.

Semanas após a vitória progressista nas urnas, quando o governo já parecia hipnotizado pelo serpentário golpista que havia subestimado na campanha, Carta Maior indagava:

‘O que se pergunta ansiosamente é se Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT; se a CUT já conversou com Stédile; se todos já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das providências que a urgência revela quando se pensa grande. Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o tique taque se esgotar’.

A boa nova na praça é que a conversa começou.

Não apenas começou.

Ganhou a urgência que só a história consegue impor aos seus protagonistas diante das provas cruciais de uma mudança de época.


A ver.


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