quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Texto para reflexão: A verdadeira meritocracia



Por Leilton Lima


Naqueles tempos todo o reino estava em crise. O rei fraco e submisso era um fantoche nas mãos da corte, dividida entre várias facções. Aquela aldeia, perdida nos confins do reino, há muito não chamava atenção. E esse isolamento permitiu uma experiência que só viria a se popularizar algumas centenas de anos à frente: a escolha do governante pelos próprios aldeões.

Contam-se muitas histórias de sabedoria do líder escolhido na aldeia. Uma delas trata de um concurso para escolher a pintura da coruja, que era o símbolo da aldeia, bem como o pintor oficial. Dois concorrentes se apresentaram para a disputa.

Um mês depois, ambos estavam diante dos nobres do lugar. Telas encobertas por fino tecido de seda, mantinham o suspense dos convidados. Ao serem apresentadas de forma cerimoniosa, o público irrompeu em aplauso entusiasmado. As pinturas eram belíssimas.

coruja moldura

No entanto, sob olhares mais atentos as diferenças começavam a ser vistas. A coruja pintada pela dama denunciava uma tinta de baixa qualidade, mas a maior diferença estava na moldura. Enquanto o pintor emoldurara seu quadro em raro mogno filigranado em ouro, sua concorrente apresentava uma moldura em madeira local, com entalhes de caprichosos arabescos. Os nobres logo chegaram à conclusão que, apesar da beleza, a peça perdia em requinte. O que não era adequado para o símbolo da governança.

Passado o burburinho, o governador tomou a palavra:

— Amigos e amigas, estamos diante de duas obras-primas e precisamos decidir com justiça, que é irmã do merecimento. Deve vencer aquele que tem mérito para tanto. Ouvi os comentários sobre o resultado do trabalho e observei a tendência para aquele que se apresenta mais adequado ao nosso julgamento de beleza, qualidade e requinte. Mas antes de expressar minha decisão, gostaria de compartilhar o relato a mim apresentado por dois observadores que enviei para acompanharem secretamente o trabalho dos finalistas do concurso.

As pessoas se entreolharam surpresas com a novidade, e o governador continuou.

— Nosso competente cavalheiro realmente está apresentando o trabalho mais apurado. Pelas informações que tenho, trata-se de alguém vocacionado que recebeu dos pais a condição de estudar na corte ainda na infância. Lá aprendeu com os melhores mestres da pintura. Ao participar do concurso, usou as melhores tintas e a tela mais perfeita, vindas de reinos distantes. Recebeu de presente a rica moldura, que encanta e acentua a beleza de sua obra.

Observando o interesse dos convidados, dirigiu o olhar para a pintora e seguiu seu raciocínio:

— A pintura apresentada pela gentil dama tem algumas falhas ante o comparativo. Sua história no entanto chamou-me a atenção: trata-se de uma plebeia nascida na parte mais densa da floresta. Meus observadores relatam que ela aprendeu a desenhar e pintar olhando os cenários que a cercava. Suas tinturas são extraídas, por suas próprias mãos, a partir de flores, madeiras e frutos. Seus pinceis, são feitos de pelos de animais atados a varetas.
Dirigindo-se a mulher, tocou-a gentilmente e solicitou: — Por favor, senhora, mostre as mãos para nossos convidados.

Timidamente a mulher apresentou as mãos espalmadas para a plateia. Os dedos finos e longos não conseguiam tirar a atenção dos resíduos de tinta e das marcas de cortes em suas palmas. Algumas ainda recentes.
E o governador prosseguiu:

— O que vocês estão vendo é o resultado do trabalho sem as ferramentas adequadas. Meus observadores constataram que todo o entalhe foi feito com uma velha lâmina de adaga, sem o cabo. Antes de proferir a minha decisão, gostaria de acrescentar que a pintura desta senhora, foi feita nos intervalos do seu trabalho voluntário de ensino a crianças. Assim, por dever de justiça, premio e escolho, para enfeitar a parede da sala principal da nossa sede, a obra do cavalheiro por ser a pintura mais perfeita.

E fazendo uma pausa dramática concluiu:

— Quanto à gentil dama, a partir de hoje será nossa pintora oficial. Por que, a meritocracia para ser verdadeira não pode olhar tão somente o resultado, mas também valores eternos como esforço, superação e solidariedade.

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