Por Leilton Lima
Naqueles tempos todo o reino
estava em crise. O rei fraco e submisso era um fantoche nas mãos da corte,
dividida entre várias facções. Aquela aldeia, perdida nos confins do reino, há
muito não chamava atenção. E esse isolamento permitiu uma experiência que só
viria a se popularizar algumas centenas de anos à frente: a escolha do
governante pelos próprios aldeões.
Contam-se muitas histórias
de sabedoria do líder escolhido na aldeia. Uma delas trata de um concurso para
escolher a pintura da coruja, que era o símbolo da aldeia, bem como o pintor
oficial. Dois concorrentes se apresentaram para a disputa.
Um mês depois, ambos estavam
diante dos nobres do lugar. Telas encobertas por fino tecido de seda, mantinham
o suspense dos convidados. Ao serem apresentadas de forma cerimoniosa, o
público irrompeu em aplauso entusiasmado. As pinturas eram belíssimas.
No entanto, sob olhares mais
atentos as diferenças começavam a ser vistas. A coruja pintada pela dama
denunciava uma tinta de baixa qualidade, mas a maior diferença estava na
moldura. Enquanto o pintor emoldurara seu quadro em raro mogno filigranado em
ouro, sua concorrente apresentava uma moldura em madeira local, com entalhes de
caprichosos arabescos. Os nobres logo chegaram à conclusão que, apesar da
beleza, a peça perdia em requinte. O que não era adequado para o símbolo da
governança.
Passado o burburinho, o
governador tomou a palavra:
— Amigos e amigas, estamos
diante de duas obras-primas e precisamos decidir com justiça, que é irmã do
merecimento. Deve vencer aquele que tem mérito para tanto. Ouvi os comentários
sobre o resultado do trabalho e observei a tendência para aquele que se
apresenta mais adequado ao nosso julgamento de beleza, qualidade e requinte.
Mas antes de expressar minha decisão, gostaria de compartilhar o relato a mim
apresentado por dois observadores que enviei para acompanharem secretamente o
trabalho dos finalistas do concurso.
As pessoas se entreolharam
surpresas com a novidade, e o governador continuou.
— Nosso competente
cavalheiro realmente está apresentando o trabalho mais apurado. Pelas
informações que tenho, trata-se de alguém vocacionado que recebeu dos pais a
condição de estudar na corte ainda na infância. Lá aprendeu com os melhores
mestres da pintura. Ao participar do concurso, usou as melhores tintas e a tela
mais perfeita, vindas de reinos distantes. Recebeu de presente a rica moldura,
que encanta e acentua a beleza de sua obra.
Observando o interesse dos
convidados, dirigiu o olhar para a pintora e seguiu seu raciocínio:
— A pintura apresentada pela
gentil dama tem algumas falhas ante o comparativo. Sua história no entanto
chamou-me a atenção: trata-se de uma plebeia nascida na parte mais densa da
floresta. Meus observadores relatam que ela aprendeu a desenhar e pintar olhando
os cenários que a cercava. Suas tinturas são extraídas, por suas próprias mãos,
a partir de flores, madeiras e frutos. Seus pinceis, são feitos de pelos de
animais atados a varetas.
Dirigindo-se a mulher,
tocou-a gentilmente e solicitou: — Por favor, senhora, mostre as mãos para
nossos convidados.
Timidamente a mulher
apresentou as mãos espalmadas para a plateia. Os dedos finos e longos não
conseguiam tirar a atenção dos resíduos de tinta e das marcas de cortes em suas
palmas. Algumas ainda recentes.
E o governador prosseguiu:
— O que vocês estão vendo é
o resultado do trabalho sem as ferramentas adequadas. Meus observadores
constataram que todo o entalhe foi feito com uma velha lâmina de adaga, sem o
cabo. Antes de proferir a minha decisão, gostaria de acrescentar que a pintura
desta senhora, foi feita nos intervalos do seu trabalho voluntário de ensino a
crianças. Assim, por dever de justiça, premio e escolho, para enfeitar a parede
da sala principal da nossa sede, a obra do cavalheiro por ser a pintura mais
perfeita.
E fazendo uma pausa
dramática concluiu:
— Quanto à gentil dama, a
partir de hoje será nossa pintora oficial. Por que, a meritocracia para ser
verdadeira não pode olhar tão somente o resultado, mas também valores eternos
como esforço, superação e solidariedade.
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