Muitos acreditam que os
acontecimentos de junho de 2013 mostraram que amplos segmentos aparentemente
adormecidos podem acordar e despertar para exigir justiça e direitos sociais.
E, ao fazê-lo de forma radical, podem causar um sobressalto no status quo instalado.
Diante disso, consideram que a classe trabalhadora brasileira terá certamente
que travar ainda muitas batalhas para que os seus filhos, muitos dos quais
estiveram nas ruas, ou continuam tentando ocupá-las, possam aceder a uma
posição estável, a um emprego qualificado e a um futuro auspicioso.
No entanto, entre as batalhas em curso e
futuras, encontram-se, certamente, as da burguesia contra o governo Dilma. Está
cada vez mais evidente que a classe burguesa dominante pretende impedir
qualquer pretensão de aumentar a participação do Estado na economia. Ela teme,
como o diabo da cruz, que tal participação possa eventualmente reduzir os
ganhos astronômicos de seu capital, redirecionando parte deles para resolver
problemas sociais acumulados há décadas.
A burguesia se deu conta do
evidente esgotamento da política de crescimento através do estímulo ao consumo,
iniciado em 2003. Sabe que se tornou indispensável, para a continuidade do
crescimento econômico e do desenvolvimento social, o aumento dos investimentos
produtivos. Por isso, ao mesmo tempo em que ataca o aumento da intervenção do
governo na economia, o chantageia, segurando seus investimentos, apesar das
evidentes vantagens oferecidas nas concessões público-privadas.
Só quem não se apercebeu dessa tática, tanto
da burguesia brasileira quanto da burguesia estrangeira, deixou de entender que
elas jogaram pesado para o total malogro do leilão de campo petrolífero de
Libra. Elas consideram absurdo o novo regimento para a exploração do pré-sal,
no qual a Petrobras deve ser a operadora única. Fizeram de tudo para que as
empresas com recursos para viabilizar a exploração e a produção se negassem a
participar do leilão, na esperança de que isso colocasse o governo contra a
parede e o obrigasse a mudar as regras.
A virada somente ocorreu com
a entrada dos chineses na jogada. Foi isso que forçou a participação dos
holandeses e franceses, temerosos de perder posições na concorrência global. E
não é por acaso que dez entre dez analistas burgueses continuem verbalizando
que o leilão foi um fracasso e uma privatização disfarçada, ao mesmo tempo em
que reclamam ser imprescindível a flexibilização ou mudança das regras,
permitindo às estrangeiras serem operadoras, numa privatização aberta.
Do ponto de vista político, essas reações da
burguesia contra a maior participação do governo na economia também explicam,
em grande medida, os movimentos em curso para as eleições de 2014. A maior
parte dessa classe dominante não está disposta a participar de um governo de
esquerda que pretenda introduzir reformas estruturais, mesmo pontuais, para
realizar um desenvolvimento socialmente menos desigual. Ela não concorda com a
introdução de impostos progressivos, ao invés de regressivos, que hoje pesam
principalmente sobre os assalariados. Nem quer perder seu poder sobre os
congressistas, com o fim dos financiamentos privados às campanhas eleitorais.
A grande burguesia, em especial, é
visceralmente contra o rompimento do domínio monopolista sobre a economia. Não
aceita qualquer medida que democratize a propriedade industrial, comercial,
agrícola, dos serviços, da mídia e do solo, e incentive a concorrência para
reduzir os preços e desenvolver mais rapidamente as forças produtivas. Não
aceita a redução das jornadas de trabalho, a melhoria dos salários, nem a
universalização dos serviços públicos. Portanto, não lhe interessam medidas
através das quais seria possível reduzir a população excluída do mercado de
trabalho e proporcionar à maior parte da população condições dignas de vida. Ao
contrário, pretende jornadas maiores, salários menores, e mais privatização dos
serviços públicos, com foco público mistificador apenas sobre alguns setores da
população.
O paradoxo consiste em que,
a rigor, nenhuma dessas mudanças é anticapitalista, ou socialista, a não ser
para aquelas mentes caboclas que, como as do Tea Party estadunidense, são
capazes de enxergar socialismo em qualquer medida de sentido social. Portanto,
a maior parte da burguesia brasileira se movimenta para impedir a reeleição de
um governo que esteja comprometido com um tipo de desenvolvimento econômico que
esteja associado a desenvolvimento social. Ela sabe que esse comprometimento e,
ao mesmo tempo, a renovada pressão das ruas tendem a fazer com que o Estado
volte a ser o instrumento para a imposição de um caminho social que não
pretende seguir.
Por outro lado, grande parte
dessa burguesia também tem a clara percepção de que suas vias de
desenvolvimento autônomo estão bloqueadas por sua profunda associação com as corporações
transnacionais estrangeiras, comandadas por um sistema financeiro sem peias. Em
tais condições, todas as tentativas de formular uma terceira via, entre a
esquerda e a direita, que poderiam ser palatáveis para as classes sociais
beneficiadas pelas políticas de transferência de renda e de aumento do salário
mínimo petistas, parecem se bater contra barreiras intransponíveis. Não por
acaso, a proposta marinista de superar a polarização PT-PSDB, silenciosamente
endossada por socialistas rosa-esmaecidos, descambou rapidamente para a
proposta de liquidação do chavismo petista, algo talvez apenas inteligível pela
extrema-direita tucana.
Apesar disso, seria ilusão pensar que essa
polarização, real e aparentemente intransponível, empurrará o centro burguês
para um provável programa de mudanças estruturais para a reeleição de Dilma. Na
verdade, como se torna cada vez mais evidente, o centro-burguês, espalhado pelo
PMDB e por outros partidos, utilizará a chantagem extremada contra o pretenso
chavismo petista para arrancar o máximo de concessões e evitar que o programa
da candidatura Dilma inclua qualquer tipo de reformas estruturais.
Emergiram, porém, problemas diferentes
daqueles existentes nas eleições de 2006 e 2010. É certo que o centro-burguês e
parte da esquerda acham que estão ganhando e não se deveria mexer em nada,
deixando tudo como está. Mas é evidente a pressão da grande burguesia por um
retrocesso, mesmo em políticas que pareciam consensuais, como a redução da taxa
de juros, o Bolsa Família, e as parcerias público-privadas para a reconstrução
da infraestrutura. O leilão de Libra, por mais que a esquerda da esquerda tenha
se rebelado contra, se tornou o toque de finados de um tratamento civilizado do
governo Dilma pela burguesia e um grito de alerta para barrar o propalado
avanço estatizante.
Paralelamente, e talvez como
um dos elementos de acirramento da inflexão da burguesia, terminou a paz das
ruas. Pelo menos aquela paz que só não era total porque as ações policiais
contra o banditismo presente no seio da imensa ralé dão a impressão de o país
estar em meio a uma guerra civil sem fim. As manifestações de junho de 2013 colocaram
milhões de pessoas de grandes e médias cidades reclamando de tudo, mas
principalmente de mobilidade urbana, saúde, educação e segurança. De um momento
para outro, o descenso das mobilizações sociais, que perduravam por mais de 25
anos, se transformou em nova ascensão. Mesmo que ainda não tenha conquistado
consistência programática, essa ascensão trouxe à luz aquilo que Ermínia
Maricato repete há muito: cidades não são apenas espaços da luta de classes.
São, por si sós, luta de classes.
Com mais de 80% da população
concentrada em cidades médias e grandes, as aglomerações urbanas brasileiras se
transformaram no principal berço de reprodução da força de trabalho e num
mercado de disputa selvagem de valores de troca, que incluem o solo, habitações,
transportes, espaços públicos e a própria vida humana. Nas cidades, o
capitalismo brasileiro coloca a nu sua natureza predatória, irracional e
caótica. A especulação imobiliária empurra a periferia pobre para novas
fronteiras sem infraestrutura alguma. E cria aquilo que Maricato chama de nó da
terra, ardil da informalidade e juventude exilada.
Se olharmos com mais atenção
para as manifestações de junho e posteriores, e para a crescente violência que,
paradoxalmente, tem acompanhado a melhoria das condições de vida de milhões de
brasileiros, incluindo o fenômeno black blocks, poderemos concluir que houve um
erro sério nas prioridades governamentais referentes à reconstrução da
infraestrutura do país. Embora ferrovias, rodovias, portos e navios sejam essenciais
para o desenvolvimento econômico, a infraestrutura e as reformas que deveriam
ter ocupado a posição prioritária são aquelas referentes à mobilidade, saúde,
educação, segurança e alimentos bons e baratos. Infraestrutura que, ao ser
reconstruída, também proporcionaria uma importante alavancagem para o
crescimento industrial e para o aumento da oferta de alimentos e outros bens de
consumo corrente.
Foi esse, e continua sendo,
o principal recado das ruas. Um recado que, para ser atendido, precisará de
mais ação do Estado. E que, queiramos ou não, acirrará as contradições tanto
com a grande burguesia quando com parte da burguesia média e pequena. São essas
modificações no processo de luta de classes, seja entre a burguesia e o
governo, seja entre grandes massas populares e o processo de desenvolvimento em
curso, que foram trazidas à tona pela nova ascensão da luta de classes.
E são elas que estão
corroendo as alianças que levaram Lula e Dilma ao governo, e precisam ser
substituídas por outras que tenham por base os atores sociais da base da
sociedade que estão se movimentando. Nessas condições, 2014 tende a ser tão ou
mais turbulento, desafiante e cheio de emoções que 2013.
Wladimir Pomar é escritor e
analista político
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