CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID
Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Neste tempo radioso da Páscoa, vamos refletir sobre o sentido da
maior festa litúrgica da Igreja. Para Israel a Páscoa era, inicialmente, uma
festa pastoril, na qual ofertavam-se ao Senhor as primícias do rebanho. Os
melhores animais eram sacrificados e aspergiam-se com seu sangue os portais das
casas, relembrando a saída do Egito para a Terra Prometida. Naquela noite do
Êxodo, Deus castigou os egípcios por não libertarem o povo eleito, enviando seu
anjo para matar todos os primogênitos das famílias e dos animais (cf. Ex
12,1-42). Assim, o primeiro sentido da Páscoa é a proteção que Deus propicia
àqueles que lhe pertencem.
Posteriormente, a Páscoa passou a ser uma festa agrária.
Celebrava a oferta a Deus das primícias da agricultura: frutas e cereais,
dentre estes a flor dos cereais, que é o trigo. O pão é o alimento primordial
da humanidade. Na Páscoa, ofertava-se, então, o pão primicial. Era a festa dos
pães novos. O rico e forte simbolismo do pão adquiriu um sentido especialíssimo
no Novo Testamento, conforme nos ensina o Evangelho de São João (cf. Jo 6), do qual
trataremos adiante.
Somente no templo se faziam as oferendas a Deus, anualmente. Os
Evangelhos registram três viagens de Jesus a Jerusalém, por ocasião da Páscoa.
No primeiro relato, Jesus aparece no templo aos doze anos, discutindo com os
escribas e doutores da lei (cf. Lc 2,41-52). Donde lhe vem toda essa sabedoria?
Somente se pode responder pelo reconhecimento da Sabedoria eterna, presente
naquele jovem, que assumira a natureza humana para estar conosco.
Na segunda ocasião em que vai a Jerusalém, Jesus não se mostra
publicamente, somente a pessoas particulares, porque os judeus tinham decidido
matá-lo. Celebra a festa da Páscoa, mantém diálogo com os que lhe são fiéis e,
à noite, recolhe-se junto a seus amigos.
A terceira ida é a mais importante. Representa o termo da missão
e da vida de Jesus, o ponto máximo aonde Ele queria chegar. Ele se refere a
isto como um batismo: “Devo ser batizado num batismo; e quanto anseio até que
ele se cumpra!” (Lc 12,50). Este momento é exatamente o da sua condenação,
começando com a agonia no Horto de Getsêmani, continuando com o vexame do
processo sumário conduzido por Pilatos, e concluindo com a Paixão, o caminho do
Calvário, a Crucifixão e a Morte. Mas toda essa tragédia foi, afinal, iluminada
pela gloriosa Ressurreição do Senhor.
Voltando ao tema da festa pastoril, encontramos no Novo
Testamento a analogia fundamental e definitiva entre o sangue de animais
imolados marcando as casas, com o Sangue de Cristo, derramado por nós na cruz.
Já não se assinalam os portais, mas cada pessoa é ungida com esse precioso
Sangue. São Paulo chega a afirmar: “No Filho, pelo seu sangue, temos a
Redenção, a remissão dos pecados, segundo as riquezas da sua graça que derramou
profusamente sobre nós, em torrentes de sabedoria e de prudência” (Ef 1,7). A
viagem final do Senhor a Jerusalém é o início do nosso caminho de Salvação.
A Páscoa de Jesus Cristo uniu a festa pastoril à festa do pão
novo, dando-lhes pleno sentido. Surgem uma nova realidade de vida e um novo
sustento para a humanidade, que transcendem a dimensão material, apontando para
o Absoluto. Especialmente, no capítulo 6 do Evangelho de São João, Jesus fala
da “Vida eterna” e do “Pão novo”: “Eu sou o Pão da Vida: aquele que vem a mim
não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede. Quem comer deste Pão
viverá eternamente. E o Pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação
do mundo” (Jo 6,35.51). Eis a promessa da Eucaristia.
A manutenção desta “Vida nova” precisa do sustento que nos vem
pelo Pão da Eucaristia e pelo Pão da Palavra, a doutrina da verdade, que
desmascara toda ilusão, mentira e embuste. Precisa, também, da graça infundida
em nós pelos demais Sacramentos. O cristão é alguém que não se acomoda ao que
“já era”, simplesmente. Sua vida é um contínuo dinamismo, em busca de ideais,
perspectivas e horizontes novos, porém, firmente alicerçados na “pedra
angular”, que é o Senhor.
Até nas Alianças que Deus fez com seu povo, encontramos esta
novidade. As primeiras alianças precisavam ser constantemente renovadas, por
causa da infidelidade de Israel. Foram quatro: com nossos primeiros pais, no
paraíso; com Noé, simbolizada pelo arco-íris; com Abraão, prometendo-lhe uma
descendência perene; com Moisés, entregando-lhe o Decálogo.
Finalmente, Deus estabeleceu com a humanidade a Nova Aliança,
definitiva e eterna, que não será jamais rompida, pois fundamenta-se no Sangue
do próprio Filho, Jesus Cristo. Ele mesmo o atesta, na última Ceia com os 12
Apóstolos, quando institui a Eucaristia: “Este cálice é a Nova Aliança no meu
sangue, que é derramado por vós” (Lc 22,20).
Por isso, devemos estar bem conscientes da importância de
comungarmos o Corpo e o Sangue do Senhor. São Paulo alerta: “Que cada um se
examine a si mesmo, e assim coma desse Pão e beba desse Cálice. Aquele que o
come e o bebe sem distinguir o Corpo do Senhor, come e bebe a sua própria
condenação” (1Cor 11,28-29).
Intimamente unidos ao Senhor pela Eucaristia, coloquemos todo o
nosso empenho em nos conservarmos assim, repetindo em nossa prece diária:
“Senhor, não permitais que eu me separe de Vós”. Como nos separamos? Por uma
rejeição total do senhorio de Deus em nossa vida, dedicando-nos a coisas
exclusivamente materiais e, não raro, opostas aos ideais do Evangelho, que
levam a nos fecharmos ao amor e à justiça para com os irmãos e irmãs.
Agora que estamos no auge da Campanha da Fraternidade, reitero
minhas exortações, publicadas em reflexões anteriores, sobre o apreço que
devemos dar à vida. Comecemos pela nossa própria vida, através da prática da
temperança e do equilíbrio, em relação às coisas que nos cercam. Preservemos
nossa saúde e nossa paz interior, pois são dons maravilhosos de Deus para nós.
Defendamos o direito dos nascituros à vida, pois são seres humanos
como nós, e não podem ser rebaixados à condição de meros doadores de células.
Respeitemos a vida do próximo que, mesmo sem ser nosso irmão em Cristo, é
imagem e semelhança de Deus. Cuidemos dos idosos, propiciando-lhes sair desta
vida para a eternidade na paz de terem cumprido, integralmente, sua missão na
terra. À semelhança das palavras de Jesus, possam dizer: “Nas tuas mãos,
Senhor, entrego a minha vida”.
Neste tempo pascal, com intensa alegria, celebremos a vida, que
nos é dada pelo Criador e renovada pela Ressurreição de Cristo!